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Celina

No Dia da Mulher Negra, entenda as origens da data e conheça a história de Tereza de Benguela

As origens de 25 de julho remetem ao 1º Encontro de Mulheres Negras da América Latina e do Caribe, em 1992. No Brasil, a partir de 2014, a data passou a homenagear Tereza de Benguela, que liderou o Quilombo Quariterê, em Mato Grosso
Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra: data tem como origem décadas de luta e resistência de mulheres negras Foto: Arte de Ana Luiza Costa
Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra: data tem como origem décadas de luta e resistência de mulheres negras Foto: Arte de Ana Luiza Costa

O Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha é celebrado neste sábado, 25 de julho. No Brasil, é também Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra. Mais do que um momento para homenagens, esta é uma ocasião para reflexão e mobilização política, que tem como origem décadas de luta e resistência das mulheres negras.

A data foi estabelecida primeiramente em 1992, quando foi realizada, na República Dominicana, uma reunião de mulheres negras de mais de 70 países da região. O encontro aconteceu no contexto de uma grande articulação feminista que se preparava para a participação de conferências que aconteceriam nos anos seguintes: a do Cairo, em 1994, sobre populações em desenvolvimento, e a de Pequim, em 1995, sobre os direitos das mulheres .

A ativista, historiadora e mestre em Educação e Contemporaneidade Valdecir Nascimento, que fazia parte do grupo de mulheres do Movimento Negro Unificado (MNU) e participou do encontro representando a Bahia, conta que elas se mobilizaram para protestar contra a comemoração dos 500 anos do "descobrimento" das Américas.

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— Nós, mulheres negras da América Latina e região, nos reunimos na República Dominicana para protestar porque não concordamos que a América foi descoberta, ela já existia e foi alvo de expansão da colonização europeia. Ocorreram marchas e debates, pensamos estratégias políticas de luta antirracista, antisexista e contra todas as formas de opressão — conta Valdecir, atualmente coordenadora executiva do Odara Instituto da Mulher Negra, da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB) e do Fórum de Promoção da Igualdade (FOPIR).

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A partir da ocasião, 25 de julho foi instituído como Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e a data foi reconhecida também pela Organização das Nações Unidas (ONU). Após o encontro, foi articulada a Rede de Mulheres Negras da região, e também da diáspora, pois mulheres de outros locais reivindicaram participar, explica a historiadora, que é representante do Brasil na rede.

— Essa se tornou uma grande rede internacional, em que trocamos experiências, informamos as mulheres de outros países sobre a situação das mulheres negras, e montamos estratégias de incidência e intervenção em conferências mundiais e fóruns que discutem sobre direitos humanos e a melhoria da qualidade de vida das populações — afirma, e completa: — O 25 de julho surge dentro de um contexto de reação, de protesto. A partir daí voltamos para os nossos países e a cada ano utilizamos esse momento para protestar e promover atividades.

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Em 2014, a data foi reforçada quando a então presidente Dilma Rousseff sancionou a lei que instituiu o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra. Símbolo de resistência, Tereza viveu no século XVIII, na região do Vale do Guaporé, em Mato Grosso. Vinda de uma dinastia africana, foi escravizada no Brasil e conseguiu fugir com seu companheiro, José Piolho. Após sua morte, ela se tornou líder do Quilombo Quariterê, que abrigava mais de cem pessoas.

— Sabemos muito através da oralidade, das narrativas das minhas mais velhas e das lembranças que elas têm sobre a própria Tereza. Ela foi uma mulher da interseccionalidade. A líder, quem cuidava dos doentes e dava abrigo para todo mundo: negros que foram escravizados, indígenas e brancos que cometeram crimes contra a Coroa. Nesse aquilombamento, ela organizou um sistema parlamentar e resistiu, por aproximadamente 37 anos. Tereza não foi só uma rainha, foi uma rainha líder — conta a historiadora Silviane Ramos, pesquisadora quilombola descendente de Tereza de Benguela, que estuda sobre mulheres negras da região de Vila Bela da Santíssima Trindade, no Vale do Guaporé.

Uma das muitas mulheres negras invisibilizadas pela história oficial , Tereza vem ganhando mais notoriedade sobre sua trajetória. No entanto, a historiadora afirma se preocupar com a forma como se ensina sobre quem ela foi.

— Já li que ela se suicidou, mas esse é um discurso da branquitude. Tereza resistiu até os limites do abatimento do quilombo e fez um ritual próprio do povo dela. Quando o inimigo chega você se entrega para onde você nasceu, a mãe terra — explica Silviane Ramos, e completa: — Ter o dia 25 de julho como Dia Nacional de Tereza de Benguela nos dá, enquanto comunidade, um reconhecimento sobre tantas lutas para sobreviver, resguardando essa identidade diaspórica.

A Rainha Tereza, como é conhecida, é referência para as mulheres do município de Vila Bela, onde hoje existe o grupo intergeracional de mulheres Coletivo Herdeiras do Quariterê. Duas décadas antes da instituição da data em sua homenagem, ela ganhou destaque ao ser tema do desfile da escola de samba Unidos do Viradouro, no carnaval carioca de 1994, com o enredo: "Tereza de Benguela, uma rainha negra no pantanal". Em 2020, também foi homenageada no enredo da Barroca Zona Sul, no carnaval de São Paulo.

Julho das Pretas

O dia 25 de julho, portanto, é um momento de mobilização, protesto e reivindicação. No entanto, Valdecir Nascimento conta que, após sua instituição, a data passou a ser utilizada por políticos apenas para fazer homenagens e dar títulos a mulheres negras. Indignadas com o esvaziamento político, as mulheres do Instituto Odara organizaram, em 2013, o Julho das Pretas .

— Dar comenda não altera a vida das mulheres negras, não enfrenta o racismo, não impede o feminicídio. Criamos essa agenda coletiva que é uma estratégia para dar sentido político e reconhecer o processo histórico de luta das mulheres negras. Abrimos um canal onde todos os segmentos das mulheres podem ter sua voz assegurada. Trazemos riqueza de reflexão e de debate, proposta de políticas públicas, discutindo o macro da sociedade brasileira — explica Nascimento, que também é articuladora da Rede de Mulheres Negras do Nordeste e da Rede de Defensoras dos Direitos Humanos.

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Em 2015, o Julho das Pretas se fortaleceu com a primeira Marcha Nacional de Mulheres Negras, em Brasília. Atualmente, diversas organizações de mulheres negras pelo país promovem eventos e mobilizações durante todo o mês de julho.

Este ano, o evento organizado pelo Odara Instituto da Mulher Negra é, pela primeira vez, virtual, devido às condições impostas pela pandemia da Covid-19. Em meio aos protestos e mobilizações recentes contra o assassinato de pessoas negras no Brasil e Estados Unidos, entre outros países, o tema escolhido para 2020 foi: "Em Defesa das Vidas Negras, Pelo Bem Viver". O Bem Viver, explica Valdecir, é uma perspectiva civilizatória, que conversa com o Ubuntu, uma filosofia africana que afirma: "Eu sou porque nós somos".

— Dizer que vidas negras importam não é suficiente. Quando colocamos esse tema, afirmamos que estamos nos mobilizando, emprestando nossos corpos e nossas mentes, toda força que nós mulheres negras temos para assegurar a vida do povo negro. Não vamos nos silenciar. Queremos nos levantar contra o genocídio da população negra. É com essa força que a gente levanta o Nordeste e convida as mulheres do Brasil a vir conosco reagir a todas as formas de opressão — afirma Valdecir Nascimento.

Ela ainda explica:

— Nosso projeto de nação não é excludente. Como disse Angela Davis: nós, mulheres negras, somos as últimas na base da pirâmide, e qualquer mudança, transformação que nos atingir também vai atingir a sociedade brasileira como um todo.