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Celina

Patricia Hill Collins: 'Pessoas como Marielle Franco pagam preço mais alto na luta pela democracia'

Expoente do feminismo negro, americana ajudou a construir o conceito de interseccionalidade e teve sua principal obra traduzida este ano para o português
Patricia Hill Collins foi a primeira mulher negra a presidir a Associação Americana de Sociologia Foto: Arte sobre foto de Divulgação
Patricia Hill Collins foi a primeira mulher negra a presidir a Associação Americana de Sociologia Foto: Arte sobre foto de Divulgação

SÃO PAULO - O feminismo negro é um projeto de justiça social. A definição é da socióloga estadunidense Patricia Hill Collins. Ela explica que, da escravidão até agora, pessoas negras têm vivenciado o medo da própria morte e da morte de seus familiares e que o feminismo negro lida com essa ameaça existencial. A sobrevivência é onde a política começa, diz.

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A fala fez parte da palestra “Feminismo negro e a política do empoderamento”, que integrou a programação do seminário “Democracia em colapso?”, promovido pela editora Boitempo e pelo Sesc Pinheiros na última semana, em São Paulo. Em sua visita ao Brasil, Collins também passou pelo Rio de Janeiro, onde participou, no último domingo, dia 20, da 8ª edição da Festa Literária das Periferias (Flup).

Collins é professora emérita da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos. Ela foi a primeira mulher negra a presidir a Associação Americana de Sociologia. Em 1990, lançou o “Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento” — que, neste ano, após três décadas, ganhou tradução oficial para o português, pela Boitempo.

Socióloga afirma que há quatro alicerces do movimento feminista negro: interseccionalidade, esperança, luta por justiça social e ação política Foto: Divulgação
Socióloga afirma que há quatro alicerces do movimento feminista negro: interseccionalidade, esperança, luta por justiça social e ação política Foto: Divulgação

O livro faz parte do cânone bibliográfico dos estudos de gênero e raça nos EUA. Na obra, a autora mapeia as principais ideias e temas que constroem o panorama do pensamento feminista negro através da produção intelectual de ativistas, escritoras e pensadoras negras como Angela Davis, bell hooks, Audre Lorde, Alice Walker, citando inclusive a brasileira Sueli Carneiro.

Com sua obra, a socióloga ajudou a construir o conceito de interseccionalidade, reforçando que raça, gênero, classe e sexualidade são sistemas de opressão que se sobrepõem e que não podem ser analisados de forma isolada. Tal entendimento é considerado pela autora como uma das quatro ideias fundamentais do pensamento feminista negro. Ela enumera a esperança, a luta pela justiça social e a ação política como os outros três alicerces deste movimento.

Collins conversou com a reportagem de CELINA na última sexta-feira, em São Paulo. No papo, comentou sobre o que aproxima e o que difere o movimento feminista negro nos EUA e no Brasil, falou sobre o ascensão da extrema direita nos dois países — e como isso afeta a vida de mulheres negras — e comentou o símbolo mundial que se tornou Marielle Franco.

Quais são as semelhanças e diferenças entre o feminismo negro nos Estados Unidos e no Brasil? O que acha do movimento brasileiro?

Eu acho que os movimentos são bastante semelhantes em muitos aspectos. Estão tentando empoderar mulheres negras, reconhecê-las como talentosas e como totalmente humanas. São movimentos que tentam dar a essas mulheres acesso a emprego, dinheiro, educação. Porém, acho que as histórias do Brasil e dos Estados Unidos realmente moldaram a maneira como os diferentes movimentos estão acontecendo.

Uma coisa significativa entre os EUA e o Brasil é como a raça foi organizada nesses dois países. De muitas maneiras, meu entendimento do Brasil é que você tinha que criar o conceito de pessoas negras antes de poder ter um feminismo negro. Portanto, a questão de criar a negritude e o que isso significa em uma democracia racial e, depois, pensar em como a situação das mulheres negras foi afetada por essa filosofia de democracia racial. Também acho que no Brasil você tem um discurso de classe muito mais forte do que nos EUA. Lá falamos frequentemente de coisas como sendo questões de raça, quando na verdade elas também são de classe.

“Nos EUA sempre ficou mais claro do que no Brasil que havia a necessidade de se lidar com uma política racial. Mas nos EUA não era tão claro que era preciso uma política de classe.”

Patricia Hill Collins
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No Brasil, ver esse movimento político de mulheres negras surgir décadas atrás, durante um período bastante difícil para isso acontecer, significa que ele foi afetado por essa história em particular. Nos EUA, acho que é uma história muito diferente, de escravidão e segregação, de não poder proteger sua família e sua cultura. No Brasil, vejo que muito do feminismo negro se baseia em influências africanas. Nos EUA, esse não é o caso. O movimento tem se inspirado em influências religiosas, traduzindo ideias e políticas dessa comunidade. Tendo dito isso, também digo que nos EUA sempre ficou mais claro do que no Brasil que havia a necessidade de se lidar com uma política racial. Mas nos EUA não era tão claro que era preciso uma política de classe. Porém, ambos os movimentos convergem em um espaço de raça, classe, gênero e sexualidade. É quase como se estivessem em caminhos diferentes, paralelos e semelhantes, e ainda assim chegaram a uma conclusão cruzada nos últimos trinta anos.

Quando eu descobri o feminismo negro no Brasil, fiquei empolgada. Eu me perguntei: “O que elas estão fazendo lá?”. E, aparentemente, as feministas negras no Brasil têm consciência do que está acontecendo nos EUA. E não apenas nos EUA. Quando você tem uma  noção de feminismo da diáspora negra, você tem uma comparação entre o Brasil e os EUA. Mas você também tem feminismo negro na Grã-Bretanha, no mundo francófono, em outros lugares da África continental.

Patricia Hill Collins: "Se você olha para o Partido dos Panteras Negras... eles alimentavam as pessoas e isso é parte do motivo pelo qual as pessoas ouviam as suas ideias. Porque, se você se importa o suficiente para nos alimentar, quando nosso governo diz que não somos dignos de ser alimentados, quem eu vou ouvir?" Foto: Divulgação
Patricia Hill Collins: "Se você olha para o Partido dos Panteras Negras... eles alimentavam as pessoas e isso é parte do motivo pelo qual as pessoas ouviam as suas ideias. Porque, se você se importa o suficiente para nos alimentar, quando nosso governo diz que não somos dignos de ser alimentados, quem eu vou ouvir?" Foto: Divulgação

No livro “Pensamento Feminista Negro”, a senhora explica que o feminismo negro é um projeto de justiça social. Cita a brasileira Sueli Carneiro, que diz que ‘as pessoas precisam fazer mais do que esperar por um futuro melhor’. Como esse projeto de justiça social pode ser construído no cotidiano?

Eu acho que, se você é uma mulher negra, você olha em volta e questiona: “O que é socialmente injusto na minha vida?”. Construir um projeto de justiça social é realmente olhar para o que você está enfrentando e com o que tem que trabalhar, porque algumas coisas podem ser socialmente injustas, mas você não pode fazer nada a respeito. Vou dar um exemplo: minha mãe trabalhava em um emprego em que era preterida repetidamente e mal paga. Ela não podia fazer nada sobre aquilo naquele momento, mas era uma injustiça social. Portanto, se você tem que conviver com algum tipo de injustiça social, verá os outros e poderá lutar mais nessas outras arenas.

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Nas comunidades negras americanas, as mulheres negras estão na linha de frente da educação, iniciando escolas, ensinando crianças e pensando em materiais curriculares. Na verdade, é onde você encontra muitas mulheres negras profissionais hoje, porque é o resultado de todas essas gerações de injustiças sociais, de escolas não serem igualmente financiadas e até mesmo de haver um tratamento diferente, pois você recebe um diploma, mas não consegue um emprego. Se realmente fosse uma questão de talento e mérito, não haveria a necessidade de um feminismo negro. Se houvesse justiça social, não haveria feminismo negro. Há mulheres que se tornam líderes e que sabem sobre tudo isso e dão voz a essas questões ou as transformam em um projeto político. Essa é a natureza do que eu penso ser uma política de empoderamento na vida cotidiana, feita por indivíduos e pessoas conectadas. De fato, o feminismo negro é um projeto de justiça social.

No ano passado, a vereadora Marielle Franco foi assassinada no Rio de Janeiro. Um crime ainda sem resposta. Ela era uma mulher negra feminista, eleita por mais de 46 mil votos. O que isso diz sobre a democracia?

Para mim, Marielle deu sua vida pelo princípio da democracia, da inclusão e da igualdade. E muitas pessoas fizeram isso. É interessante falar disso estando nesta conferência particularmente (o seminário “Democracia em colapso?”, em São Paulo) , onde digo que a democracia é um ideal, que ainda não alcançamos. É algo que todos devemos nos esforçar para construir, mas o custo pago por alguns é consideravelmente mais alto que o custo pago por outros. De fato, alguns não pagam custo algum, apenas desfrutam dos benefícios das lutas e contribuições de outras pessoas. Alguém como Marielle Franco, que foi inspiração para tantas pessoas porque era uma mulher negra, da favela, e minoria sexual, que tinha toda essa constelação complexa e heterogênea de coisas em sua vida, ela fez as escolhas que fez para se tornar uma líder. É muito importante que a gente não apenas se conforme e diga "ah, ela foi uma mártir". A questão realmente é sobre o que ela estava tentando fazer. As pessoas precisam assumir e continuar. Nem todo mundo pode ser líder, nem todo mundo vai ser uma Marielle Franco. Ela é especial. Mas o que ela estava fazendo era realmente coletivo e comunitário.

“Se houvesse justiça social, não haveria feminismo negro.”

Patricia Hill Collins
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Então, para mim, para a democracia isso é como um lembrete, uma lição de que todos podem contribuir. Não podemos apenas ficar à margem e chorar. Essa é a reação inicial, temos que fazer isso, mas, em algum momento, é hora de entender quais são as lições disso, de questionar o que ela gostaria que fizéssemos e criou o espaço para fazermos. Isso está claro para mim. Você disse que o crime ainda não teve resolução, e ainda há suspeita de envolvimento de agentes do Estado. Às vezes você nunca sabe. Era assim nos linchamentos nos EUA, em que os corpos das pessoas que desapareciam nunca eram encontrados. Então você nunca sabia o que de fato aconteceu. Você meio que sabe, mas nunca realmente sabe. E isso é difícil, porque seria muito bom acreditar em um sistema de Justiça que identificasse as pessoas que fizeram coisas ruins e as levasse a julgamento.

Em sua avaliação, quais impactos o fortalecimento da extrema direita no mundo, principalmente no Estados Unidos e aqui no Brasil, tem sobre as mulheres negras?

Claramente a política do "nós contra eles" na extrema direita significa que "nós", a extrema direita — às vezes chamada de nacionalismo branco ou nacionalismo étnico —, realmente representa o povo. "Nós somos as pessoas e todas essas outras pessoas são menos pessoas, e, quando chegarmos ao poder, o que faremos é garantir que ‘eles’ não vão mais tirar proveito de ‘nós’". Esse discurso é muito sedutor, se você faz parte do "nós". Você meio que diz "sim, eles são terríveis". O que tende a acontecer é que, se você procura as pessoas que são tratadas como  os "eles", que se quer penalizar, nos EUA, historicamente, são as mulheres negras. Sob o sistema de extrema direita na Europa, "eles" são os imigrantes e requerentes de asilo. Para as mulheres negras, essa é uma luta antiga. E o feminismo negro reconhece que, se você quer lutar por mulheres negras, precisa lutar por todas as mulheres negras. E, ao lutar pela mulher negra, você está em aliança com todos esses outros grupos que foram posicionados como "eles" pela extrema direita. É também uma maneira importante de ver as conexões entre misoginia, racismo, capitalismo e todos esses "ismos", que geralmente são vistos como se fossem coisas separadas, quando, na verdade, não são. As mulheres negras estão bem no centro dessas questões. Então essa é a maneira de moldar o feminismo negro. A vida das mulheres negras é afetada por uma política de retirar direitos de educação, saúde e moradia. São questões que afetam muito mais do que as mulheres negras, mas as afetam de uma forma particular. A extrema direita procura pessoas para odiar e defende as pessoas que considera boas, consideradas "nós". Isso é o que é. Não é algo novo.

A senhora diz que a questão existencial da sobrevivência está enraizada no pensamento feminista negro. Por quê?

Porque acho que a sobrevivência é onde a política começa. Se você não sobreviver e se não ajudar os outros a sobreviver, não há base para a política. A política não está apenas na mente, está no corpo, está em ser alimentado, em ter alguém para perder. Tudo isso é base para a política. Se você olha para o Partido dos Panteras Negras... eles alimentavam as pessoas e isso é parte do motivo pelo qual as pessoas ouviam as suas ideias. Porque, se você se importa o suficiente para nos alimentar, quando nosso governo diz que não somos dignos de ser alimentados, quem eu vou ouvir? A pessoa que está me alimentando ou a pessoa que não está me alimentando? A questão da sobrevivência e o que é preciso para sobreviver — corpo, mente e alma — em uma sociedade que não é dedicada à sua sobrevivência, é crucial. Se eu realmente penso em todas as maneiras pelas quais as pessoas encontram recursos e sobrevivem a situações difíceis, eu reconheço que tudo pode piorar, mas eu vou sobreviver [I will survive]. Coloque um pouco de disco. [Risos.] É um hino. Este é realmente o primeiro passo.