Celina

Por que Junior Lima está certo ao criticar letra de 'Maria Chiquinha'

Canção, que contém feminicídio, é uma das muitas da música brasileira que naturalizam a violência contra a mulher. Durante show, cantor afirmou que 'não são mais os anos 90' e que 'Maria Chiquinha faz o que quiser no mato'
Cantores Sandy e Junior durante show da turnê "Nossa História", que comemora 30 anos da carreira dos dois Foto: Arte sobre foto de Jarbas Oliveira
Cantores Sandy e Junior durante show da turnê "Nossa História", que comemora 30 anos da carreira dos dois Foto: Arte sobre foto de Jarbas Oliveira

RIO - Um homem desconfia que a mulher o traiu enquanto estava "no mato" e, por isso, resolve matá-la. Em resumo, esta é a história da canção "Maria Chiquinha", sucesso nos anos 90 na voz da então dupla Sandy e Junior. No show dos irmãos da última sexta-feira, no entanto, quando a plateia aproveitou um intervalo de cinco minutos para entoar a música — que está fora do setlist da turnê comemorativa de 30 anos de carreira dos cantores —, Junior Lima interrompeu o final da canção:

— Isso não é mais aceitável. Não são mais os anos 90 — afirmou o cantor, no palco, ao lado da irmã. — Deixem a Maria Chiquinha em paz. A Maria Chiquinha faz o que quiser no mato.

Show de Sandy e Junior em Recife, na turnê "Nossa história", em que comemoram 30 anos de carreira Foto: MARCELO THEOBALD
Show de Sandy e Junior em Recife, na turnê "Nossa história", em que comemoram 30 anos de carreira Foto: MARCELO THEOBALD

A música foi interpretada pela dupla no início daquela década, em 1991, integrando o primeiro ábum de Sandy e Junior, "Aniversário do tatu". Desde então, a consciência sobre relacionamentos abusivos, violência doméstica, sexismo e outros temas afins ganhou novas dimensões. Esses assuntos foram, de forma crescente, objetos de estudos acadêmicos e de políticas públicas. A Lei Maria da Penha foi sancionada em 2006, criando mecanismos de prevenção e punição à violência contra a mulher, e a Lei do Feminicídio foi conquistada em 2015, tipificando o assassinato motivado pela condição de gênero.

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Para Miriam Hermeto, professora de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a atitude de Junior foi "louvável".

— Foi um ato político, importantíssimo. Do ponto de vista social, foi louvável. Mostrou uma compreensão de que a letra hoje tem um peso que não se atribuía a ela 30 anos atrás.

Ela destaca que as músicas, assim como qualquer expressão artística, refletem a cultura e a moral de uma época. Segundo Miriam, é importante ter uma visão crítica sobre músicas que naturalizam a violência contra a mulher, mas isso não significa que se deva bani-las.

— Não se trata de tentar apagar determinada música. Não precisamos fingir que "Maria Chiquinha" e outras canções não existiram. Não podemos, nem devemos fazer isso. Essa ideia de apagar, de banir, não ajuda a mudar a realidade. Em escolas, por exemplo, é muito mais eficaz usar essas obras no aprendizado de estudantes justamente para educar sobre como eram vistas as relações sociais em outros tempos e como o entendimento da sociedade foi se alterando. Só assim é possível transformar a realidade — ressalta a historiadora.

INFOGRÁFICO: O retrato da mulher através da música brasileira

Miriam lembra que um debate semelhante ocorreu no campo da literatura anos atrás, quando cresceram de maneira significativa as críticas aos aspectos racistas da obra de Monteiro Lobato. A professora de História afirma que cada obra é fruto de seu contexto social — e, ao mesmo tempo, exerce influência sobre ele. E melhor do que censurá-la e condená-la ao esquecimento é usá-la como ferramenta para entender a história da sociedade e desenvolver um pensamento crítico.

— A obra de arte tanto cria representações sociais quanto faz veicular essas representações. E essas representações, quando consideradas banais, podem favorecer a aceitação de uma violência — diz ela. — Não dá para dizer que a música provoque a violência, mas ela pode favorecer a aceitação social dessa violência.

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A forma como a mulher é retratada em músicas sertanejas foi o tema da pesquisa de mestrado de Amanda Contieri, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), apresentada em 2015. Ela analisou canções lançadas entre 1950 e 2010 e observou que, mesmo depois de todos esses anos, "a imagem construída da mulher nas canções analisadas ainda a coloca em posição subalterna socialmente".

O estudo de Amanda mostra que, comumente, a mulher é retratada de cinco formas: como alguém que deve buscar um ideal de perfeição, um casamento, a maternidade, como alguém que tem o corpo objetificado ou que é objeto de violência.

Segundo a autora, "a expectativa é de que os resultados da pesquisa empreendida possam servir como subsídio para os professores de Língua Português que se interessam por abordar o gênero canção em suas aulas de uma perspectiva crítica".

Machismo em gêneros musicais variados

Mas, quando se trata desse tema, nenhum gênero musical tem exclusividade. O machismo e a violência contra a mulher estão presentes do sertanejo ao funk, passando pelo samba — afinal, estão presentes em várias searas da sociedade.

A canção “Amor de malandro”, gravada por Francisco Alves em 1929, deixa isso evidente: “Se ele te bate/ É porque gosta de ti/ Pois bater-se em quem/ Não se gosta/ Eu nunca vi”. Outro exemplo é “Dá nela!”, sucesso no carnaval de 1930: “Esta mulher/ Há muito tempo me provoca/ Dá nela!/ Dá nela!”, diz a letra de Ary Barroso.

O cenário começou a mudar, segundo muitos especialistas, na década de 70, quando compositoras como Rita Lee e Vanusa começaram a defender os direitos das mulheres de forma significativa em suas letras.

Em 2015, no álbum “A mulher do fim do mundo”, Elza Soares fez questão de incluir uma música que é um alerta contra a violência doméstica. “Eu vou ligar pro um oito zero/ Vou entregar teu nome”, avisa a cantora em seus versos, divulgando o telefone da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher.