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Celina

Por que muitos homens ainda acham graça em piadas depreciativas sobre as mulheres? Elas explicam

Vídeo de marido fazendo chacota do convívio com a mulher na quarentena viraliza e mostra um aspecto mais cruel do período de isolamento social para conter o coronavírus
Já sobrecarredas, mulheres são alvo de piada em meio à pandemia Foto: Reprodução
Já sobrecarredas, mulheres são alvo de piada em meio à pandemia Foto: Reprodução

RIO - Um senhor para em frente à câmera, segurando alguns cartazes. Enquanto ele fala sobre como está sendo ótima a convivência em casa durante a quarentena imposta pela pandemia de coronavírus , tecendo elogios a sua esposa, nos cartazes pede socorro, porque "não aguenta mais" as exigências da companheira com a limpeza da casa.

Enquanto fala que o casal está de acordo em tudo e que a esposa é "muito bonitinha", nos cartazes diz que "está sempre fechado no banheiro" para que ela "deixe de incomodar" e que ela "enche sua paciência com a limpeza três vezes ao dia". Ao final do vídeo, pede "socorro."

A intenção do vídeo é de fazer rir, mas pode haver quem não ache graça nas queixas do marido insatisfeito. Embora o humor seja uma ferramenta importante para encarar com mais leveza os desafios impostos pelo isolamento social recomendado para conter a propagação do coronavírus , memes e piadas que reforçam estereótipos e que taxam as mulheres como "loucas", "neuróticas" ou "chatas" revelam uma aspecto um pouco mais cruel, e nada engraçado, da convivência forçada entre os casais heterossexuais neste período.

As mulheres ainda são responsáveis pela maior parte do cuidado da família e das tarefas domésticas. Neste período, com mais integrantes da família em casa e com a constante preocupação com a saúde de todos, elas ficam ainda mais sobrecarregadas — o que pode ter impactos sobre a sua saúde física e mental.

Não é fácil ficar trancado em casa. A quarentena impõe muitos desafios para as relações familiares e pode, inclusive, elevar as tensões entre os casais — o que pode até mesmo agravar ou desencadear situações de violência doméstica. Mesmo que não se chegue a este ponto, a agressividade, ainda que disfarçada de humor, pode ofender aquela que está cuidando de todos neste momento difícil.

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Mas por que os homens ainda fazem e riem desse tipo de piada? CELINA conversou com a psicanalista Vera Iaconelli e com as antropólogas Débora Diniz e Mirian Goldenberg para tentar responder essa pergunta.

As piadas são uma forma de transmitir a nossa agressividade disfarçada, às vezes de forma mais sutil, às vezes mais explícita, explica a psicanalista Vera Iaconelli.

— Piada é aquilo que gente usa para embalar alguma coisa politicamente incorreta que quer dizer. Tem sempre alguém que fica na berlinda. Essas piadas podem ser inofensivas, mas algumas são bem ofensivas, principalmente quando revelam o que não tem a menor graça, revelam a própria desigualdade social entre homens e mulheres — afirma a psicanalista — Quando a piada reforça essa desigualdade, de saída ela já é de mau gosto — completa.

No período de quarentena como medida de prevenção ao coronavírus, um vídeo circulou pelas redes sociais com um idoso falando jocosamente sobre sua situação em isolamento dentro de casa. Ele faz piadas falando que 'está tudo bem', enquanto mostra cartazes que revelariam pedidos de
No período de quarentena como medida de prevenção ao coronavírus, um vídeo circulou pelas redes sociais com um idoso falando jocosamente sobre sua situação em isolamento dentro de casa. Ele faz piadas falando que 'está tudo bem', enquanto mostra cartazes que revelariam pedidos de "socorro' por motivos estereotipados como limpeza da casa.

O humor está sempre em um balanço entre ser uma forma de se verbalizar aquilo que não pode ser dito e uma forma de humilhação, uma narrativa de indignidade, opina a antropóloga Débora Diniz. Para ela, piadas como a do vídeo reproduzem uma linguagem masculina sobre a casa como aquilo que os homens menosprezam. Ele serve como um canal de comunicação entre esses homens, que estão isolados, naquilo que os une numa relação de dominação e poder.

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— O humor também é um instrumento de poder, não é só uma forma inocente, se é que há humor inocente, de expressar o indizível. Ele é instrumento de poder porque ele tem um sarcasmo, ironiza, transforma as mulheres, esposas e sogras em objetos de riso. Os homens estão, pelo humor, expressando sua relação de poder e a sua relação de distanciamento com esse universo da casa e dos filhos. É uma situação típica em que o humor não é libertador, mas reafirma esse não lugar dos homens na esfera doméstica.

Esse tipo de piada passa uma mensagem de violência e desprezo para as mulheres, avalia Iaconelli. "Pode ofender e distanciar as mulheres dos homens, ao invés de aproximar, que é o que a gente imagina ser o ideal numa relação amorosa", diz a psicanalista.

Diniz ressalta que esse tipo de piada, como a feita no vídeo, diz respeito a um tipo específico de composição familiar de uma classe protegida, que não representa todas as famílias do Brasil, formada por homem e mulher que têm o privilégio de poder ficar em casa neste período de confinamento. Ela reforça que o retorno do homem à casa pode, inclusive, criar uma situação de maior vulnerabilidade para muitas mulheres.

— Mesmo para essas mulheres privilegiadas, esse tipo de piada é uma oportunidade de compreender o universo masculino e compreender que o feminismo e a libertação das mulheres também diz respeito a elas. Se cada uma de nós, que for casada ou coabitar com homem, receber esse tipo de piada nas nossas redes, isso diz respeito a todas nós. O machismo nos toca diretamente.

Quem está rindo?

Para a antropóloga Mirian Goldenberg, o humor pode ser uma ferramenta importante para lidar com o sofrimento neste momento de crise. Ela tem conversado diariamente com pessoas com mais de 60 anos e se dedicado ao efeito que a pandemia está tendo sobre os idosos e conta que eles mesmos compartilham com ela piadas que acham engraçadas.

— O humor e a alegria podem sim ser importantes e necessários, porque são formas de se distanciar desse sofrimento inevitável. Mas esse humor tem que ser o que todo mundo acha graça. Tratar as mulheres como neuróticas ou exigentes e os velhos como teimosos ou descartáveis não tem a menor graça — afirma, reforçando que piadas de teor ofensivo não têm atingido só as mulheres neste momento, mas os idosos também.

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— Percebo que existe um individualismo tão grande que faz com que cada um queira sobreviver ou passar por isso da melhor forma possível para si. E isso não vejo só em homens e nem só jovens — avalia a antropóloga. Ela aponta que esse tipo de piada reflete o preconceito contra a velhice e contra as mulheres.

— As mulheres estão tentando organizar, não só fisicamente, mas emocionalmente a vida de todos que elas amam. Para isso, não podem fazer tudo sozinhas. Vejo mulheres se desgastando terrivelmente tentando cuidar de todo mundo que elas podem, mas não estão cuidando de si. E aí como vai se fazer piada sobre esse sofrimento? Tem que ser muito insensível. Ou a piada tem que ser uma que elas também queiram compartilhar e que as façam rir. Eu diria que todos estão sofrendo neste momento. Mas tem que haver uma sensibilidade maior para aqueles que estão sofrendo e cuidando de todos os que estão sofrendo — finaliza.