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Celina

Por que é tão difícil identificar um relacionamento abusivo (e sair dele)

Comportamentos danosos são disfarçados de cuidado e afeto. Veja sete sinais de que uma relação já excedeu os limites
Na última semana, a youtuber Dora Figueiredo publicou desabafo em seu canal e reacendeu o debate sobre relacionamentos abusivos Foto: Arte de Nina Millen
Na última semana, a youtuber Dora Figueiredo publicou desabafo em seu canal e reacendeu o debate sobre relacionamentos abusivos Foto: Arte de Nina Millen

RIO - Um vídeo publicado pela youtuber Dora Figueiredo em 2019 abriu o debate sobre abuso em relacionamentos amorosos. Emocionada, ela falou por 17 minutos sobre sua relação com um ex-namorado, contando detalhes de como se sentia controlada e diminuída pelo então companheiro. As imagens (assista abaixo) já foram visualizadas mais de 2 milhões de vezes.

Em entrevista ao Extra, Dora afirmou que teve dificuldades até mesmo para perceber que tinha vivido um namoro abusivo.

"Só percebi que o relacionamento era abusivo dois meses depois do término. Para mim foi difícil. É difícil identificar um relacionamento abusivo quando se está dentro dele. A gente se sente culpada o tempo todo, alcança um nível muito grande de dependência", disse a youtuber na época.

Mas por que será que é tão difícil identificar um relacionamento deste tipo? E por que é tão difícil sair dele?

A psicóloga Pamella Rossy, do Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem) da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, explica que os comportamentos abusivos nem sempre são tão evidentes como uma agressão física, especialmente no início da relação. Eles costumam começar a aparecer de maneira mais sútil.

Ciúme excessivo, invasão de privacidade, chantagem emocional e o controle financeiro são alguns dos sinais comuns de relações abusivas, afirma a psicóloga. No entanto, esses comportamentos costumam ser "disfarçados" de gestos de proteção, afeto ou cuidado.

— A mulher envolvida emocionalmente acredita que esses comportamentos estão relacionados a cuidado e amor. Isso faz com que ela leve muito tempo para começar a entender e perceber que esses comportamentos não são saudáveis e que vão impactar a vida dela ao ponto de ela ficar isolada, não ter controle sobre a vida financeira, não ter mais direito à sua vida social. É uma violência mascarada de cuidado — destaca Rossy.

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A especialista explica que nem mesmo as mulheres que têm conhecimento sobre o assunto estão imunes de vivenciar uma relação abusiva.

— As mulheres empoderadas não estão imunes, porque o relacionamento abusivo é mascarado pelo amor. A mulher mais esclarecida não consegue se perceber nesse lugar de vítima — diz ela. — No meu trabalho, atendo mulheres de todas as classes sociais, de todas as idades e que até trabalham com empoderamento feminino.

Sete sinais de abuso no relacionamento

Com a ajuda das psicólogas Pamella Rossy e Aline Martins, enumeramos alguns comportamentos que podem sinalizar que a relação é abusiva, para além da violência física.

1 - Ciúme excessivo

Ter inseguranças é normal, mas quando o “amor” vira justificativa para invasão de privacidade, agressão verbal, ameaças e chantagens emocionais, um limite foi ultrapassado e isso gera uma relação de controle.

2 - Falta de sociabilidade

Quando o casal deixa de interagir com outras pessoas, há um sinal de alerta. O abusador faz com que a vítima corte vínculos com parentes e amigos para que possa controlá-la, sempre sob a justificativa de que "fulano não é bom para você" ou "sicrano está dando em cima de você".

3- Controle da vida do outro

O controle se dá quando o parceiro começa a decidir o que o outro pode ou não fazer. Estão incluídos aí aspectos como roupa, alimentação, amigos, atividades e, em casos mais graves, até o trabalho que o parceiro pode ter ou não. “Você vai sair assim?”, “é para o seu bem” ou “você fica mais bonita sem esse batom” são frases comuns.

4- Invasão de privacidade

O relacionamento é a dois, mas cada um deve manter seu espaço. Se ele lê suas mensagens, e-mails, controla quem são seus amigos nas redes sociais ou as suas senhas sem o seu consentimento, está invadindo sua privacidade. Se você foi pressionada ou chantageada para ceder as suas senhas e o acesso às suas redes, também.

5 - Chantagem emocional

"Se você não fizer isso, eu vou me matar", "se você fizer aquilo, eu vou terminar tudo". A chantagem geralmente toma essas formas. Se o abusador percebe que isso funciona — que afeta a parceira e a deixa instável emocionalmente —, ele adota essa prática para manipular.

6 - Manipulação da autoestima

"Você não é tão linda ou interessante quanto acha que é", "você nunca vai achar alguém que te ame como eu". O abusador menospreza e, aos poucos, destrói a autoestima da parceira, fazendo com que ela passe a acreditar que ele é o único homem que vai amá-la e que, sem ele, ela vai ficar sozinha.

7 - Controle financeiro

Sob a justificativa do cuidado, o abusador passa a controlar as finanças da parceira — tendo ela renda própria ou não. Aos poucos, vai tirando sua autonomia e a prende na relação.

Por que é difícil romper esse ciclo?

Fatores variados podem fazer com que uma mulher não consiga romper um relacionamento, mesmo tendo consciência dos abusos cometidos pelo parceiro, explica Pamella Rossy. Dependência financeira, falta de apoio da família e dos amigos e a própria dependência afetiva podem levar a pessoa a permanecer em uma relação não saudável. Também pesa o medo de tentar romper a relação e ser agredida fisicamente por isso, mesmo que a violência praticada até então seja mais sútil.

— Em geral, a vítima acredita que o companheiro vai mudar, porque ele não é violento o tempo todo. Eles oscilam entre momentos de violência e cuidado. Isso pode fazer com que o relacionamento perdure por anos — explica a psicóloga. — A vergonha de expor que viveu aquela situação e a descrença pública que ela vai sofrer, quando decidir falar, também fazem com que ela permaneça no relacionamento por mais tempo.

A psicóloga Aline Martins ressalta o alto nível de fragilidade que um relacionamento abusivo cria na vítima.

— Às vezes, romper é muito mais difícil do que identificar, justamente porque a pessoa está com a autoestima tão prejudicada que passa a acreditar que não vai conseguir mais ninguém — afirma.

Ela lembra que relacionamento abusivo não é exclusividade de casais heterossexuais e, embora a dinâmica mais comum seja a do homem abusador e da mulher como vítima, nem sempre é assim.

Quebrando o silêncio

Há quatro anos, outro vídeo sobre relações abusivas viralizou no Youtube. Em “Não tira o batom vermelho” (assista abaixo), a youtuber Julia Tolezano, a Jout Jout, levantou o debate sobre o assunto enumerando uma série de situações consideradas abusivas em um namoro.

— Toda semana uma pessoa me manda uma mensagem agradecendo pelo vídeo, dizendo que conseguiu terminar um relacionamento abusivo por causa dele — conta.

Ela acredita que hoje em dia há uma consciência maior do que é aceitável ou não em uma relação. Até hoje, o vídeo sobre relacionamento abusivo é um dos mais vistos do seu canal. De 2015 para cá, já acumulou mais de 3 milhões de visualizações.

A psicólogas Rossy e Martins também comemoram que cada vez mais mulheres falem sobre o assunto, pois quanto mais informação disseminada, mais pessoas podem se perceber neste ciclo e rompê-lo.

— As mulheres têm muita vergonha e dificuldade de falar sobre o que vivem dentro de casa. Uma dica muito valiosa é falar com as pessoas ao seu redor, mesmo que você não tenha a intenção de romper ou denunciar o agressor naquele momento. É importante que as mulheres contem aquilo que estão vivenciando porque, quando resolverem romper e precisarem ter acesso a uma medida protetiva, elas terão o relato de outras pessoas que já sabiam do histórico da relação — aconselha Rossy.

Ela recomenda também que, ao tomar consciência de que a relação passou do limite do que é considerado saudável, a mulher busque amparo em pessoas de confiança e, na sequência, busque ajuda profissional.

— Pode ser psicoterapia ou um atendimento nos centros especializados, nos núcleos especializados das defensorias públicas. Nesses locais, ela vai encontrar o suporte e o auxílio necessário para construir alternativas para sair da relação — afirma.

A psicóloga reforça, ainda, que, se já houve alguma ameaça ou agressão física, é importante que a vítima procure uma delegacia, preferencialmente uma especializada em atendimento à mulher (Deam). Se não for possível, a delegacia mais próxima deve acolhê-la e registrar a denúncia.