Celina

'Quem cuida de pessoas que tiveram um baque emocional como o nosso'?, questiona irmã de Marielle Franco

Anielle Franco diz que a família prepara um livro de memórias sobre a vereadora e que vai continuar o trabalho que ela realizava na Maré
Anielle, irmã da vereadora Marielle Franco Foto: Arte de Luiz Lopes
Anielle, irmã da vereadora Marielle Franco Foto: Arte de Luiz Lopes

Anielle Franco, irmã mais nova de Marielle, recebe convites do mundo inteiro para falar sobre a vida da vereadora, assassinada a tiros no dia 14 de março de 2018. O carinho que recebe ajuda a acalmar e a trabalhar para a preservação da memória da irmã.

Em entrevista concedida ao GLOBO antes da prisão dos sois suspeitos de executarem Marielle Franco, Anielle diz que a família vai continuar o trabalho que a vereadora realizava na Maré e revela como era o convívio com a irmã mais velha: "A gente tinha uma parceria que me faz muita falta; Talvez eu nunca mais tenha algo assim na vida".

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O GLOBO: Quando foi a última vez em que esteve com a Marielle?

Anielle: Foi no domingo, dia 11 de março. Eu tinha ido para um torneio de vôlei pela manhã, mas me machuquei no torneio e voltei para casa mais cedo. Ela estava tomando conta da minha filha, e ficamos juntas a tarde toda: almoçamos, conversmaos. Depois do assassinato da Marielle, entendi que ali foi a despedida. Falamos de tudo naquele dia, tudo que você puder imaginar a gente falou. Ela ia para uma festa e me pediu para levá-la. Foi o nosso último momento, três dias antes de ea morrer.

Como era a relação de vocês?

Sempre foi muito boa. Eu me inspirava muito nela, que costumava me dizer que eu não precisava errar para aprender; eu podia aprender com os erros dela, que era mais velha. Cresci ouvindo isso. Marielle sempre foi abusada e eu, a medrosa. Como eu era mais tímida e medrosa, ela me passava coragem. Acompanhando os passos dela, fui moldando os meus. Um exemplo: eu sempre gostei de jogar vôlei, mas só tinha homem, e eles não me deixavam participar. Um dia, a Marielle desceu comigo, furou a bola, e eles me deixaram jogar. Na adolescência, tinha muita coisa que eu preferia falar com ela a falar com a minha mãe. Ela era forte, trabalhadora, tinha três empregos, um estudo. Hoje, tudo é muito duro. A gente tinha uma parceria que me faz muita falta; talvez eu nunca mais tenha algo assim na vida.

Como você soube do assassinato?

No dia 14 de março, ela me ligou, por volta das 21h, e disse que tinha que passar na minha casa para pegar um carregador para o computador. Depois disso, fomos dormir, eu e a minha filha. Logo depois, uma amiga me ligou perguntando se estava tudo bem com a minha mãe a minha irmã. E disse que sim, que tinha acabado de falar com a Marielle. Ela me disse para olhar os sites de notícias, porque tinha umas coisas esquisitas. Quando entrei, li: "vereadora assassinada a tiros". Desci a escada correndo, minha sobrinha e minha mãe já estavam chorando. Quando abri a porta, o pai da Mariah já estava lá,  e nós fomos para o local do crime. De primeira, não me deixaram entrar, já estava isolado. Me identifiquei, tentei chegar perto do carro, mas me impediram. Vi apenas a mão dela para fora, o sangue pingando, a bolsa e os óculos no chão.. Foi assim que eu soube.

Como você lidou com as repercussões após o crime?

Se eu pudesse, dividiria a repercussão em dois pontos. Primeiro, a Marielle virou uma mártir, um símbolo. Não imaginávamos que teria essa repercussão mundial. Foram muitos os convites para falar sobre ela no exterior, mas não pude aceitá-los por conta do meu trabalho. Mas fui à França e ao Canadá, e vou guardar a lembrança  de ter falado sobre Marielle. Acho que, onde ela estiver, está orgulhosa. Somos todos muito orgulhosos da trajetória dela. Mas tem um outro lado que trouxe muita dor. É difícil ver a sua irmã, alguém que você ama, sendo usada como se fosse um produto comercial para, por exemplo, alavancar carreiras políticas. Tentaram acabar com a reputação dela, falaram que ela defendia bandido.

Qual a sua relação com legado da Marielle?

Anielle: Hoje eu me divido entre a minha vida pessoal - sou mãe, professora, tia e filha - e o Instituto Marielle Franco, que nós criamos. O Papo Franco é o primeiro programa do Instituto, que começou com a Mari, um ano antes da campanha dela para vereadora. Hoje, ele é isso: formação política por mei oda memória dela. Mas não é política parlamentar. Estou falando de valores, de essência. A família está escrevendo um livro de memórias, mais para deixar registrado nossos sentimentos, trazer nossas memórias da infância dela. Sentimos muita falta disso: Marielle tem uma mãe, tem uma filha que muitos nem sabem que existe.  O projeto visa tocar essas pessoas que tiveram alguma perda na vida, como minha mãe, meu pai e a minha sobrinha Luyara.  Quem cuida deles?  Quem cuida dessa pessoa que toma um baque emocional desses? Minha mãe não vai ter outra filha, meu pai também não. A Luyara não vai ter outra mãe. Eu não vou ter outra irmã. Vamos tocar o projeto defendendo a memória dela, honrando o sangue dela que foi ali derramado. Por que é o meu sangue também. A questão racial e os valores da família me chamam. E vou honrar isso até o final.