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Celina

Rebecca Solnit: 'Os homens não entendem as questões que afetam as vidas das mulheres'

Historiadora e jornalista americana lança livro de memórias em que reflete sobre como a experiência feminina é marcada por tentativas de silenciamento só interrompidas pelo ressurgimento do feminismo
Rebecca Solnit Foto: Divulgação/Adrian Mendoza
Rebecca Solnit Foto: Divulgação/Adrian Mendoza

Rebecca Solnit estava numa festa quando um homem começou a discorrer sobre um livro. Foram ao menos quatro tentativas até fazê-lo entender que estava diante da autora e, portanto, a longa explicação não era necessária. O episódio originou um ensaio e, em 2008, o best-seller “Os homens explicam tudo para mim”, que, por sua vez, inspirou a criação do termo mansplaining , usado para definir o paternalismo insistente de muitos homens ao explicarem qualquer assunto às mulheres.

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Com mais de 15 livros publicados e quase 40 anos de carreira dedicada a escrever sobre feminismo, violência e cultura, a historiadora e jornalista americana de 57 anos lança “Recordações da minha inexistência” (Companhia das Letras), um memorial de sua experiência como mulher, amplamente marcada pelo desejo de afirmar-se como uma voz em uma sociedade que, historicamente, dá mais credibilidade ao discurso masculino.

— Eu quis escrever sobre a experiência de não ter uma voz a ponto de achar que não vale a pena tentar falar. Acredito que essa condição ainda afeta muitas mulheres e faz parte de uma ideologia que valoriza mais os homens — diz Solnit, para quem o silenciamento das mulheres está enraizado na cultura. — Isso acontece, por exemplo, quando não damos credibilidade ao que uma profissional diz sobre sua área de conhecimento ou, pior, quando uma mulher afirma que seu companheiro ameaça matá-la, mas as autoridades policiais não acreditam. Se multiplicarmos essas experiências, podemos ver como elas moldam a participação feminina na sociedade — reflete.

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Machismo estrutural

O que Solnit defende com esse argumento é que as diversas experiências de violência vividas pelas mulheres desencorajam sua participação no debate público e, assim, colaboram para a manutenção da desigualdade de gênero. Uma mulher que sofre violência física do marido pode não ter forças para apresentar suas ideias ao chefe; uma outra cujos projetos não são ouvidos no trabalho por puro machismo estrutural dificilmente projetará voos mais altos, por exemplo, na política.

— Em geral, os homens não entendem essas questões porque não são afetados por elas. Já eu não consigo imaginar o quanto a minha vida teria sido diferente se não tivesse sido atravessada por essas experiências, como as vidas da maioria dos homens não são — diz.

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Para Solnit, o problema está naqueles que preferem não escutar ou que não querem ter que lidar com as consequências dessa escuta. Ela acredita que a pandemia é um bom exemplo da inabilidade das sociedades de reconhecer a violência cotidiana contra as mulheres:

— Há alguns anos, escrevi um artigo em que chamei a masculinidade de “egoísmo radical”. A pandemia mostrou que as mulheres têm mais responsabilidades em casa, sobretudo com as crianças, apesar de não existir uma lei afirmando que elas têm que cuidar dos filhos. Os homens não assumirem sua responsabilidade parental gera uma desigualdade profunda —afirma Solnit, sugerindo que a maneira de contar as histórias pode reverter esse quadro. — E se, em vez de escrever “pandemia tira mulheres do mercado de trabalho”, nós escrevêssemos “recusa dos homens em assumir suas responsabilidades não permite às mulheres ter uma carreira?”.

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Apontar os vieses que tornam a experiência feminina invisível e mostrar novas narrativas são características dos ensaios escritos por Solnit. Ela entende que, nos últimos anos, o desenvolvimento de novas abordagens de questões como a crise climática e a igualdade no casamento heteroafetivo (“que não era sequer um tema antes do feminismo”) foram avanços importantes.

— Isso tem a ver com quem escolhemos ouvir. Harvey Weinstein (produtor de cinema condenado por estupro) tinha certeza de que poderia manter as mulheres em silêncio, dizendo que elas estavam delirando. Mas o ressurgimento do feminismo nos últimos anos fez com que elas falassem. E foi essa democracia de vozes, que é o mundo em que eu quero viver, que o impediu de cometer mais crimes — reflete a autora.

E, na democracia de vozes, Rebecca Solnit não precisa ouvir uma explicação paternalista sobre o livro que ela mesma escreveu.

SERVIÇO

recordacoes da minha inexistencia.png

Título: Recordações da minha inexistência - memórias
Autora: Rebecca Solnit
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 64,90 e R$ 39,90 (ebook)