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Celina Antônia Burke

Síndrome do impostor: por que tantas mulheres ainda se sentem programadas para desacreditar da própria capacidade?

'Impostora mesmo é a sociedade, que diz oferecer oportunidades, mas sempre faz questão de nos lembrar que há um limite até onde podemos chegar. Acreditemos: não há', escreve a educadora Antônia Burke

Quando eu tinha 22 anos, consegui emprego como monitora de Redação em um colégio. Meu filho tinha 6 meses, eu estava separada do pai dele e, pós licença-maternidade, tomei a decisão de abandonar o jornalismo para ser professora. Eu já dava aulas desde o início da faculdade, mas apenas como renda complementar ou em pré-vestibulares sociais, nunca como fonte de sustento. Estava com medo, mas muito confiante. Me dediquei, treinei, estudei o quanto podia entre mamadeiras, serviços domésticos e toda a sobrecarga que uma mãe solo costuma precisar lidar.

Logo me pediram para cobrir a licença de uma professora. Que sorte eu tinha dado! Fui bem aceita e elogiada por alunos e responsáveis, amava preparar as aulas. Eu me sentia tão realizada que nem mesmo a culpa por chegar em casa com meu bebê dormindo me fazia cogitar desistir, sentia que também estava fazendo aquilo por nós dois. Ao fim do semestre, participei da minha primeira reunião na escola. Lá, foram anunciados os professores mais bem avaliados pelas turmas e meu nome estava entre eles. A sensação de ouvi-lo depois de tanto esforço me emocionou.

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Ainda estava radiante quando o diretor pedagógico da escola me parabenizou na frente de todos e me convidou para ir à sua sala. Mal me sentei e ouvi essas palavras: “quando me disseram que uma monitora muito competente precisava se tornar professora, eu estranhei, já que normalmente as pessoas levam alguns anos para serem promovidas aqui. Quando te vi, entendi porque te querem tanto. Parabéns pela avaliação, mas você sabe que os alunos só gostam da sua aula porque você é bonitinha, né?”

Um soco na alma.

Perdi o fôlego por alguns instantes, mas sorri, agradeci e fui para casa. Chorei uma noite inteira. Ainda trabalhei com ele por alguns anos, mas fiz questão de sair assim que possível. Entretanto, mesmo com tanto tempo passado, eu me lembrava desse momento com muita frequência. E nunca entendi bem o porquê.

Recentemente, já como diretora em outra escola, conversei com uma aluna. Ela estava em ano de vestibular e dizia que suas redações passaram a vir com notas muito altas, não conseguia acreditar que estava sendo bem avaliada. Li as redações, seu texto era impecável.

Cheguei a pensar se aquilo era uma espécie de charme, falsa modéstia inocente e comum entre os alunos, uma forma distorcida de mostrar ao professor que está evoluindo, mas não: tinha algo de muito familiar naquela postura, o objetivo parecia mesmo ser me mostrar o quanto era óbvio que ela não merecia aquelas notas. Pedi que me levasse todas as redações que tinha escrito naquele ano e passei algumas horas apontando detalhadamente as razões que justificavam suas notas altíssimas. Apesar da estranheza que me causou o momento, fiquei satisfeita quando percebi que depois ela passou a aceitar que seus resultados não eram fruto de sorte ou de um corretor distraído, como ela costumava argumentar. Esqueci o assunto.

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Alguns dias depois, ao fim da aula, ela me entregou duas folhas impressas e dobradas. Era um artigo que falava sobre o fenômeno psíquico capaz de fazer alguém duvidar frequentemente de sua capacidade: a Síndrome do Impostor. O  termo é utilizado quando uma pessoa sente de forma intensa que suas conquistas se dão por sorte ou quando pensa que não é tão boa ou talentosa quanto outras pessoas podem imaginar, chegando até mesmo a temer que a qualquer momento alguém descobrirá sua inabilidade.

Tudo o que eu tinha feito e vivido até aquele dia se transformou. Imediatamente fui transportada de volta ao momento da sala do diretor: pela primeira vez, eu consegui enxergar com clareza o porquê de não ter dito nada naquele dia. Não posso comparar o que sei sobre me defender do machismo com o que sabia há dez anos, mas certamente eu já tinha recursos para responder a uma ofensa tão clara e escolhi o silêncio. Nos últimos anos, me enganei dizendo que agi assim porque não queria arriscar o emprego com um filho tão pequeno precisando comer, mas hoje sei que, de alguma forma, eu acreditei naquelas palavras.

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Depois daquele dia, comecei a perceber que o assunto era mais comentado do que eu imaginava, principalmente entre minhas alunas. Felizmente a geração delas tem mais recursos para identificar seus problemas. Comentei sobre o artigo com algumas amigas: muitas não conheciam o termo, mas se identificaram com as características listadas e descreveram sensações que nunca tinham me relatado antes com tanta clareza.

Comecei a ler tudo sobre o assunto e decidi lançar uma pesquisa. Postei o link nas redes sociais, aberto a qualquer pessoa que desejasse responder. O formulário tinha perguntas relacionadas à Síndrome do Impostor, como “Quando conquista algo, você costuma cogitar a possibilidade de que alcançou sucesso por sorte ou por conhecer as pessoas certas?” ou “Você já pensou que alguém estava equivocado por lhe escolher para alguma função?” e, como eu esperava, a quantidade de mulheres que respondeu “sim” para a maioria das perguntas foi muito superior aos homens.

Depois, descobri que minha constatação não era nenhuma novidade. O primeiro estudo que cita o termo “impostor”, escrito pelas pesquisadoras Pauline Clance e Suzanne Ines, em 1978, mapeou justamente as mulheres, principalmente as que já ocupavam funções de alto desempenho, apenas comprovando que o massacre intelectual feminino é histórico e que suas consequências continuam enraizadas em nós.

Hoje, não é difícil encontrar informações sobre o assunto. Em alguns sites, é possível realizar testes de múltipla escolha para verificar se você sofre do mal, que sequer é reconhecido como doença ou transtorno mental pela OMS. Apesar de achar importante que as questões e sensações sejam nomeadas, acredito que o foco dessa discussão deveria ser: por que tantas pessoas, principalmente mulheres, tendem a sentir-se dessa forma? Por que tantas de nós parecemos programadas para desacreditar nossa capacidade?

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No fundo, sabemos bem as razões pelas quais somos tão suscetíveis a esse sentimento.A sociedade de modo geral, principalmente no ambiente familiar, contribui profundamente para a destruição da nossa autoestima. Não basta sermos competentes, leais ou estudiosas: os homens precisam “gostar” de nós, o que não parece algo fácil de alcançar. Se somos bem sucedidas, é porque fomos agressivas, mandonas ou brutas. Se realizamos um bom trabalho, corremos o risco de ouvir que trabalhamos “como homens”. E, se por alguma razão nos sensibilizamos ou choramos, não servimos mais para aquela função, reduzidas a “mulherzinhas”.

Homens desejam ser pais, mas não querem contratar as mulheres que geram essas crianças, o que obriga muitas de nós a escolher entre carreira e maternidade. A não ser, claro, que estejamos dispostas a amamentar com o computador em cima do bebê ou voltar ao trabalho antes do fim da licença. Essas injustiças acabam nos exaurindo e, muitas vezes, gerando a desmotivação que nos faz acreditar que somos incompetentes em todas as esferas de nossas vidas.

Nos almoços de domingo, normalmente somos nós descascando as batatas enquanto os homens e meninos são servidos, deixando claro que esse é o trabalho que nos cabe. Se sofremos algum tipo de assédio, mesmo que sejamos acolhidas, possivelmente receberemos uma recomendação que nos responsabiliza, como aumentar o tamanho da saia ou diminuir a quantidade de sorrisos. Os mesmos sorrisos que nos exigem para que não sejamos taxadas como antipáticas ou turronas. Se nos confundem desde tão cedo, como podemos ter noção de quem somos e do que podemos?

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Em muitas escolas — hoje de forma mais velada — somos afastadas das ciências, permitindo que áreas inteiras sejam ocupadas essencialmente por homens. Até mesmo alguns professores ainda insistem em insinuar que meninas só se preocupam com futilidades ou que não têm capacidade de compreender determinados assuntos. Conheço engenheiras, por exemplo, que relatam esforços sobrenaturais para provar que são tão boas quanto os homens com quem trabalham ou estudam, ainda que na maioria das vezes sejam muito mais capacitadas do que seus colegas.

Isso quando chegamos às escolas: segundo dados do IBGE de 2019, atualmente há mais de 1,7 milhão de mulheres que não terminaram o ensino médio no Brasil. Entre os homens, a maior causa da evasão escolar é a necessidade de trabalhar para contribuir com a renda familiar. As mulheres costumam abandonar os estudos porque engravidam ou porque precisam cuidar de uma criança, um idoso ou familiar com necessidades especiais.

É sempre importante destacar que para as mulheres negras o cenário é ainda mais devastador. O racismo adiciona um peso imenso à dúvida sobre as próprias capacidades. Na faixa etária de 19 a 24 anos, 33% das mulheres negras não têm o ensino médio, enquanto o índice é de 18,8% entre as brancas. Em uma entrevista, a escritora e ativista do movimento negro nos EUA, Maya Angelou, falecida em 2014, disse que constantemente tinha a sensação de que sua falta de talento seria descoberta, mesmo após 11 livros publicados e aclamados pela crítica.

Por isso, a educação tem um papel muito mais relevante do que se imagina na prevenção do problema. Uma menina pode ser mentalmente massacrada pelo seu entorno e passar a duvidar de suas conquistas, mas se um educador for capaz de identificar essa sensação de incapacidade, conseguirá não só incentivar como reconhecer seus talentos e habilidades. A carga pode ser pesada em casa e na rua, mas se a escola estiver preparada, os danos podem ser muito reduzidos.

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É papel da educação mostrar às meninas, logo nos primeiros anos, que elas realmente têm autonomia para se dedicar a qualquer coisa que desejem aprender. Que todos, inclusive os meninos, podem e devem intervir caso presenciem alguma injustiça, seja recriminando a “piada” sexista ou, no futuro, questionando a empresa quando seu salário for maior do que o da mulher que ocupa o mesmo cargo.

A escola pode contribuir, também, para que uma menina branca consiga identificar quando está sendo favorecida pela cor da sua pele e para que todos sintam-se capazes de combater as injustiças. A luta pela igualdade deve ser diária e intensiva, por meio de oficinas, trabalhos e, principalmente, coerência nas regras, propostas e cobranças da instituição.

A mulher que se calou depois do assédio moral na sala do diretor é a mesma que convenceu a aluna de que suas redações eram excelentes, mas também é a mulher que quase desistiu deste artigo por acreditar que não conseguiria escrever sobre o tema. É importante entendermos que a Síndrome do Impostor dificilmente desaparecerá por completo, são muitos anos de convencimento por parte de uma sociedade profundamente machista e cerceadora.

Por isso, quanto mais estivermos conscientes do que motiva essa sensação tão comum, maiores as nossas chances de impedir que meninas tornem-se mulheres que abrem mão de suas ideias e aspirações pelo medo irracional de serem desmascaradas. Na verdade, impostora mesmo é a sociedade, que diz oferecer oportunidades, mas sempre faz questão de nos lembrar que há um limite até onde podemos chegar. Acreditemos: não há.

*Antônia Burke é professora de redação e diretora do Colégio e Curso de A a Z.