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Thelma, campeã do BBB 20: 'As pessoas me elegeram para representar um basta à discriminação'

Em entrevista à CELINA, a médica anestesista que venceu a 20ª edição do 'Big Brother Brasil' fala sobre racismo, machismo, representatividade e coronavírus
Thelma Assis, campeã do BBB 20 Foto: Denis Cordeiro / Divulgação
Thelma Assis, campeã do BBB 20 Foto: Denis Cordeiro / Divulgação

"O BBB 20 só pode ser seu. Ele tem que ser seu, Thelma." Foi assim que, na noite de 27 de abril de 2020, o apresentador do "Big Brother Brasil", Tiago Leifert, anunciou a vencedora da vigésima — e histórica — edição do reality show da TV Globo. A revelação da vitória da médica anestesista foi acompanhada por gritos de comemoração de torcedores confinados em suas próprias casas nas janelas Brasil afora.

Quase um mês depois da noite que mudaria sua vida por completo, Thelma Regina Assis , 35 anos, conversou com a reportagem de CELINA por telefone. Ao longo do papo, ela refletiu sobre a representatividade da sua vitória, o machismo e o racismo dentro do reality show e como foi sair de um confinamento voluntário, na casa do BBB, para um confinamento obrigatório, imposto pela pandemia do novo coronavírus.

O "BBB 20" foi marcado por acalorados debates sobre machismo e racismo , dentro e fora da casa. Para Thelma, dentro do confinamento, as atitudes machistas eram mais explícitas. "Houve situações racistas, mas elas não foram tão explícitas. Quando entrei em contato com algumas situações aqui fora, percebi que as pessoas sentiram essa dor de enxergar atitudes racistas e aí eu não posso subestimar a dor dessas pessoas”, explica.

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Desde que saiu do programa, Thelma tem dedicado boa parte do seu tempo para falar sobre a Covid-19 e o isolamento social em transmissões e publicações nas suas redes sociais — a médica chegou a estrelar uma propaganda da Prefeitura de São Paulo em que exalta a importância de se permanecer em casa neste período. Ela conta que a medicina é sua verdadeira vocação , descoberta quando ainda era criança. "Sempre quis ser médica. Fiz meu primeiro diagnóstico aos 13 anos, do diabetes da minha mãe", diz a anestesista.

Verdadeira "inimiga do fim", Thelma conta que o que mais sente falta do BBB são as festas. "Eu realmente aproveitei o máximo que deu. Só que o programa acabou e agora estou com saudades", lamenta.

Leia a entrevista completa:

CELINA: Quando você venceu, fizemos um texto falando como sua vitória dizia uma coisa importante. Para além de ser representativa, por ser uma mulher negra, médica, feminista ganhando o BBB, na nossa leitura, a sua vitória dizia que não basta ser feminista, é preciso ser antirracista também. Para você também teve esse significado?

THELMA: Eu acho que sim. Na verdade, quando eu estava lá dentro do jogo, a minha intenção era participar mantendo meus princípios, sem passar por cima do que acredito. Ao sair, eu percebi a bandeira de representatividade que foi levantada aqui fora, pelo fato de eu ser uma mulher negra. Isso também colaborou muito. O Big Brother, esse ano, trouxe à tona questões que existem na nossa sociedade, às vezes de forma mais explícita, outras não. Achei muito interessante que as pessoas trouxeram esses assuntos, colocaram isso em pauta, e me elegeram como uma representante de um ‘basta’ para qualquer tipo de discriminação, que a sociedade já não aguenta mais. Acho que teve sim, essa participação na minha vitória, e fico muito lisonjeada por isso.

Dentro da casa, você tinha noção do tamanho que essa discussão tomou e do seu papel dentro dela?

Lá dentro, a gente não tinha noção. Na verdade, ali estava vivendo o dia a dia. É um jogo de convivência. Então, ficava ali tentando ter o máximo de inteligência emocional possível para poder sobreviver no jogo. Ao sair, o que me fez ter a noção da repercussão foi uma reunião com as pessoas que cuidaram das minhas redes sociais. Essas pessoas me apresentaram os fatos. Como é um jogo em que a gente não tem contato com tudo o que está acontecendo — o público tem contato com tudo que está acontecendo em todos os cômodos da casa, mas nós não — às vezes, fica um pouco prejudicada a nossa percepção do que está acontecendo dentro do jogo, de como as pessoas estão se posicionando. Aqui fora, após ter contato com alguns resumos feitos por essas pessoas que trabalharam comigo, foram me apresentando os fatos e eu fui entendendo as bandeiras que foram levantadas, as causas que foram pautadas e o tamanho da representatividade que tinha gerado em torno disso.

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Como está sendo agora, quase um mês depois de sair do confinamento do BBB? Já se acostumou com o confinamento aqui de fora? Como está esse processo de adaptação à nova realidade?

Eu estava num confinamento voluntário e agora estou num confinamento obrigatório. Isso não foi fácil. Para mim, o impacto foi muito grande. Eu, como médica, não imaginava que tivéssemos atingido a proporção de uma pandemia, com repercussão mundial. Não imaginava mesmo. No caminho do hotel até o aeroporto, e do aeroporto até a minha casa, pude perceber o impacto que isso tinha causado na rotina das pessoas. Não foi fácil. Aos poucos, a ficha foi caindo e eu fui entendendo a importância desse isolamento social. Entrei em contato com colegas médicos, que foram me atualizando e me situando. Mas num primeiro momento, fiquei bem chocada. Foi bem impactante para mim.

Thelma Assis, campeã do BBB 20, em propaganda da Prefeitura de São Paulo pelo isolamento social Foto: Reprodução
Thelma Assis, campeã do BBB 20, em propaganda da Prefeitura de São Paulo pelo isolamento social Foto: Reprodução

Agora você tem usado a sua voz, que foi amplificada pela vitória no BBB, para falar sobre a pandemia, sobre a batalha dos profissionais de saúde. Como tem sido atuar dessa forma nesse momento? Gostaria de estar em campo?

Eu saí de um confinamento, vim para outro, e ainda estou na fase de readaptação. Num primeiro momento, como eu te disse, busquei me informar melhor sobre a situação e como tudo estava acontecendo. Entrei em contato com meus colegas de profissão e eles me disseram que a mudança aconteceu na minha especialidade também, como anestesista. Foram estabelecidos novos protocolos dentro dos hospitais, novas logísticas para atender esses pacientes. É um processo de readaptação que ainda estou passando, então busquei novas formas de ajudar.

Acho que já seria um processo normal, independente da pandemia, eu ter que passar por uma readaptação pós reality-show antes de voltar a atuar. Mas agora tenho buscado outras formas de colaborar, usando os meus espaços de fala para orientar as pessoas sobre a importância do isolamento social, esclarecer dúvidas, sempre voltadas para a saúde, mas não só sobre Covid-19, e também, nesse momento em que as pessoas enfrentam um confinamento obrigatório, sobre saúde mental. Tenho buscado contemplar esses temas e não só falar sobre o BBB, mas levar para o meu lado profissional. Fiz uma participação no “É de Casa” entrevistando colegas profissionais de saúde, abracei uma campanha da Prefeitura de São Paulo exaltando a importância de as pessoas ficarem em casa. Tenho buscado ajudar dessa forma, enquanto não volto a atuar.

Thelma na formatura do curso de medicina Foto: Arquivo Pessoal
Thelma na formatura do curso de medicina Foto: Arquivo Pessoal

A medicina é a sua verdeira paixão? Como descobriu essa vocação?

A medicina é minha maior vocação, com certeza. Eu sou apaixonada pela medicina e pela anestesia. É uma vocação que eu tenho desde criança. Sempre falei para minha mãe que eu queria muito ser médica, apesar de saber o quanto seria difícil traçar esse caminho até a faculdade. Costumo falar que o primeiro diagnóstico que fiz foi o diabetes da minha mãe, quando eu tinha 13 anos. Ela fez xixi e acabou esquecendo de puxar a descarga e encheu de formiguinha. Como sempre fui muito estudiosa, olhei aquilo e falei ‘nossa, mãe, acho que tem açúcar no seu xixi. Você pode estar com diabetes.’ Foi ali que ela descobriu o quadro de diabetes. Eu sempre fui me apoiando nesse sonho através dessas pequenas atitudes e descobri minha vocação. E, na faculdade, isso se fortaleceu mais ainda. É muito gratificante quando a gente se vê dentro de um curso que gosta e se identifica.

Sua mãe então está no grupo de risco da Covid-19? Como vocês estão lidando com isso?

Sim, ela faz parte do grupo de risco porque é idosa e diabética. Num primeiro momento, nós tivemos um contato bem rápido, afinal de contas eu fiquei cem dias sem vê-la. Mas agora, mesmo ela morando no mesmo condomínio que eu, estamos mantendo esse isolamento. Primeiro porque tem que ser assim. E segundo porque eu me preocupo muito com a saúde dela. Então a gente tem se comunicado só por telefone, interfone. Ela está isolada no apartamento dela. Acho que é o que posso fazer para protegê-la e para não sobrecarregar o sistema de saúde nesse momento.

“Houve momentos em que não fui reconhecida como médica, pelo fato de ser negra.”

Thelma Assis
Médica anestesista e campeã do BBB 20

Você mencionou seu curso de medicina. Você já comentou que era a única mulher negra da sua turma.  Isso teve algum impacto na sua trajetória dentro da faculdade? Como era se confrontar com essa realidade quando você estava estudando?

Não só na turma de faculdade, mas todas as vezes que eu tentei buscar algum tipo de curso. Por exemplo, sou bailarina clássica formada. Por muito tempo, eu era a única mulher negra na minha turma de balé. Só nos últimos anos tive uma colega que também era negra. Na faculdade, eu era a única mulher negra. E isso sempre causa um certo desconforto. Não, na verdade, causa muito desconforto. Só que acho que a melhor forma de lidar com isso é seguindo e mostrando a nossa capacidade, independente de gênero ou de cor. Para mim, era uma questão de honra vencer a faculdade e mostrar que eu era tão capaz quanto as outras 99 pessoas de outra cor que estavam ali comigo. Acho que isso serve como exemplo para outras pessoas, agora que elas tomaram conhecimento da minha história.

Eu fico muito feliz que, aos poucos, a gente vem mostrando o nosso poder de superação e vem se colocando no mercado de trabalho, dentro das universidades. Hoje ainda, ao entrar em um centro cirúrgico onde não encontro médicos negros na mesma proporção que as outras etnias, então ainda é um trabalho longo. Mas acho que a gente está cada dia evoluindo mais nesse sentindo, por isso tenho que continuar usando esse meu lugar de fala, continuar usando todas as oportunidades que aparecem para falar sobre isso e incentivar que essa estatística possa mudar a nosso favor.

Na TV e na vida real : O que o BBB pode ensinar sobre episódios de racismo cotidiano

Ao longo da sua vida, Thelma, de que outras formas o racismo e o machismo se manifestaram?

Foram muitas. Uma estatística muito triste que temos é que se você parar para conversar com pessoas negras, muitas vão poder dizer, por exemplo, que já foram paradas pela polícia, que foi o meu caso. Muitas situações de discriminação até mesmo pós-faculdade, de eu não ser reconhecida como médica no ambiente de trabalho. Houve momentos em que não fui reconhecida como médica, pelo fato de ser negra. São essas situações que aconteceram que considero que fazem parte do racismo estrutural que a gente infelizmente tem enraizado na nossa sociedade.

Dentro do BBB, houve uma articulação muito bonita das mulheres logo no início. Ao longo do confinamento, os comportamentos machistas foram assim definidos, com esse nome, como ‘machistas’. Mas aquilo que foi apontado como racismo aqui fora nem sempre foi nomeado lá dentro, com essa palavra. Acha que ainda é mais difícil apontar isso a alguém?

Acho que o machismo dentro do BBB se apresentou de uma forma um pouco mais explícita. Para mim, ali houve situações de racismo, mas não foram tão explicitas quanto o machismo. Por isso que, com o machismo, a gente conseguiu levantar aquela bandeira e meio que fazer uma marcha feminista. Foram frases e situações que foram pontuadas realmente. Agora, o racismo, como na sociedade aqui fora, aconteceu de forma mais velada. É um reflexo do que acontece aqui fora. Muitas vezes passa despercebido e, quando vai cair a ficha, você já perdeu o timming da situação. Para mim, agora, entrando em contato com algumas situações, eu percebi que as pessoas aqui fora tiveram um lugar de dor, de enxergar atitudes racistas lá dentro, e aí não tenho como subestimar a dor dessas pessoas.

Eu e o Babu [Santana] tentamos pontuar várias vezes histórias da nossa vida, da nossa realidade e mostrar para eles, em situações e em frases, que não era legal falar, tipo ‘ovelha negra’, ‘denegrir’. Alguns termos que, às vezes, a pessoa não fala com a intenção, mas que é importante pontuar porque é uma coisa enraizada. Se a gente não pontua, a pessoa não tem como saber. Foram mais essas situações que chegaram para mim lá dentro e que sempre que tive a oportunidade, eu pontuei. Mas aqui fora isso tomou uma proporção diferente e não tem como não legitimar a dor de quem acabou considerando racistas algumas atitudes lá dentro.

“Achei muito interessante que as pessoas trouxeram esses assuntos, colocaram isso em pauta, e me elegeram como uma representante de um ‘basta’ para qualquer tipo de discriminação.”

Thelma Assis
Médica anestesista e campeã do BBB 20

O que foi muito apontado aqui fora foi o comportamento de algumas participantes em relação ao Babu. E você sempre se posicionou em relação a isso…

Eu tive uma identificação com o Babu, pela história de vida dele. Não só pelo fato de ser um homem negro. Isso também fez parte da nossa identificação. Mas também pela história de vida dele, que admiro muito. Eu sou uma pessoa muito leal às minhas amizades, independente de gênero e cor. Então me mantive com o Babu dentro do jogo e tentei pontuar isso sempre que me foi questionado. Eu falava que ia defendê-lo dentro do jogo, mesmo que isso me trouxesse consequências. Num primeiro momento, não enxerguei que o Babu de uma certa forma estava sendo segregado por conta de racismo. Eu imaginei que fossem questões do jogo, das pessoas não se identificarem com ele por outros motivos. Não tinha enxergado isso dessa forma. E como eu me identifiquei com ele, mantive minha postura, que é algo que faço aqui fora com os meus amigos também. Não teria porque não fazer lá dentro.

Depois da tua vitória, duas fotos foram muito marcantes. A da cantora Iza e dos filhos do ator Bruno Gagliasso e da apresentadora Giovanna Ewbank em frente à TV. O que você sentiu quando viu essas fotos? O que mais te surpreendeu positivamente e negativamente quando você saiu do BBB vitoriosa?

Quando eu vejo fotos de pessoas que eu sempre admirei pela postura e pelo posicionamento, como a Iza, ou o próprio casal, o Bruno Gagliasso e a Giovanna Ewbank, fico muito feliz. A questão dos filhos deles sempre serviu como exemplo. Eu sou filha adotiva também. Então, ao ver um casal que vence qualquer tipo de preconceito para mudar a história de vida daquelas duas crianças como eles fizeram, e perceber que essas crianças de identificam comigo, para mim, nossa, foi motivo de muita felicidade e muito orgulho.

O que me surpreendeu positivamente foi a proporção que o programa tomou em decorrência das bandeiras que foram levantadas. E acho que negativamente, não teve nada. Eu sei que houve participações mais polêmicas, mas sinceramente eu nem tive tempo de entrar nesse mérito, porque param mim, chegou uma resposta tão positiva. Nesses 20 dias, eu nem consegui consumir tudo que foi levantado a meu respeito,  e sobre os outros participantes muito menos. Estou buscando correr atrás do que as pessoas têm trazido de positivo. Então não tem nada de negativo que eu possa apontar.

“Ver um casal que vence qualquer tipo de preconceito para mudar a história de vida daquelas duas crianças como eles fizeram e perceber que essas crianças de identificam comigo, para mimfoi motivo de muita felicidade e muito orgulho.”

Thelma
sobre foto publicada pelo ator Bruno Gagliasso dos filhos Titi e Bless

E já está com saudades do BBB?

Das festas. Ainda mais que não dá para fazer festa aqui. Isso foi uma coisa que valorizei muito lá dentro. Eu sempre gostei muito de festa. Sempre valorizei muito, mas quando colocaram para nós a situação de isolamento social aqui fora, eu cheguei a comentar: ‘vamos aproveitar, porque nós estamos tendo aqui a oportunidade de um convívio social que as pessoas não estão tendo lá fora’. E eu realmente aproveitei o máximo que deu. Só que o programa acabou e agora estou com saudades.

Thelma comemora vitória na final do BBB 20 Foto: Marcelo Theobald / Agência O Globo
Thelma comemora vitória na final do BBB 20 Foto: Marcelo Theobald / Agência O Globo

Quais são os próximos passos da Thelma, agora milionária? Recentemente você foi contratada como influenciadora da L’Oréal Paris. O que mais está nos seus planos?

Eu tenho buscado aproveitar o máximo as oportunidades que têm chegado para mim. A L’Oréal é uma delas. Outras marcas também, que têm valorizado a minha imagem. Eu quero usar essa bandeira de representatividade, quero incentivar essas meninas que se identificaram comigo, o público LGBTQIA+ que se identificou comigo, porque existe uma empatia muito grande nessas causas, nessas lutas por respeito. Quero fazer palestras, quero ajudar da melhor forma possível. Tanto levando orientação relacionada a minha profissão, como servindo de inspiração, passando sempre uma mensagem positiva para quem me admira.