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Celina

Uma vida sem homens: a ilha na Estônia onde as mulheres mandam em tudo. Em tudo mesmo

Segundo cálculos das moradoras, Kihnu tem 300 habitantes, dos quais apenas 5 são do sexo masculino
Virve Koster e seu cachorro em uma motocicleta, nos arredores de sua casa, em Kihnu. A ilha é conhecida pelo grande número de mulheres Foto: BIRGIT PUVE / NYT
Virve Koster e seu cachorro em uma motocicleta, nos arredores de sua casa, em Kihnu. A ilha é conhecida pelo grande número de mulheres Foto: BIRGIT PUVE / NYT

KIHNU, ESTÔNIA — Enquanto tomam um café no museu de Kihnu, uma ilha da Estônia, um grupo de mulheres se pergunta: o que as mulheres da ilha ainda não realizaram? Elas listam todas as funções importantes que desempenharam na ausência dos homens , de consertar motores de tratores a rezar a missa na igreja ortodoxa. Há apenas um trabalho que elas talvez não tenham feito:

— Cavar covas, mas mesmo isso eu acho questionável — diz a diretora do Muse ude Kihnu, Maie Aav.

A Ilha de Kihnu, no mar Báltico, é uma das sete maiores da Estônia, país que tem mais de 2 mil ilhas. A maioria delas está desabitada, mas Kihnu se destaca justamente por suas habitantes: são quase todas mulheres.

Maie Av no Museu de Kihnu, a ilha conhecida pelo grande número de mulheres Foto: BIRGIT PUVE / NYT
Maie Av no Museu de Kihnu, a ilha conhecida pelo grande número de mulheres Foto: BIRGIT PUVE / NYT

Os homens começaram a deixar Kihnu no século XIX por causa de seu trabalho na pesca. Pescar e caçar focas os deixava longe de casa por meses. As mulheres de Kihnu tinham, então, que ocupar os lugares deles, desempenhar toda e qualquer tarefa necessária. Com o tempo, essa herança ficou enraizada na sociedade de Kihnu, levando a Unesco a mencionar esse aspecto da vida na ilha quando a incluiu na lista de Patrimônio Imaterial da Humanidade, em 2018.

Mas, hoje, Kihnu tem novos problemas: mudanças na indústria da pesca têm feito os homens passarem períodos mais longos na ilha. Alguns ficaram.

Mare Matas, presidente da Fundação de Cultura de Kihnu, também cuida do farol da ilha, é guia turística e administra quartos para os visitantes. Ela também é mãe de quatro: Marin, de 21;  Liis, de 18; Anni, de 12 e Maria, 9. Matas veste um aventual por cima da saia feita de lã, um sinal de que é uma mulher casada. Mas seu marido está fora, pescando.

É ela quem calcula o número de habitantes fixos na ilha: dos estimados 300 moradores, "talvez cinco seja homens".

Culpa materna: por que as mulheres ainda sofrem tanto com isso

Foi Matas quem levou o primeiro-ministro da Estônia para conhecer a ilha em sua motocicleta, um modelo soviético que é o principal meio de transporte de Kihnu.

— A segurança dele enlouqueceu, queriam me proibir de levá-lo porque eu não tenho carteira de motorista. Como se isso importasse aqui.

Kihnu tem uma hierarquia clara: crianças, comunidade e, por último, os homens.

— Temos mentalidades totalmente diferentes das pessoas do continente. As mulheres de Kihnu sempre querem fazer o que é melhor para a família, especialmente para as crianças — diz Aav, a diretora do Museu.

Mare Matas com duas de suas filhas Foto: BIRGIT PUVE / NYT
Mare Matas com duas de suas filhas Foto: BIRGIT PUVE / NYT

Em Kihnu não há caixa eletrônico, restaurante aberto o ano todo e a primeira delegacia está em construção. Os visitantes são convidados, ficam hospedados nas casas das moradoras e entram para a rotina da família, participando das refeições e dos eventos.

Em casa, Matas tem uma ovelha e um cachorro.

— Quando a ovelha nasceu, a mãe não queria nada com ela, nem mesmo alimentá-la. Isso me afetou muito, Imagine, nenhum instituto materno! então matei a ovelha mãe.

Como toda a Estônia, os residentes de Kihnu também passaram por muitas mudanças em suas vidas — quase sempre políticas (incluindo as ocupações soviética e alemã) e fora de seu controle. Quando questionadas sobre as maiores mudanças na ilha, elas dão respostas como essa:

— Calças — diz Roosie karjam, de 83 anos, a mais famosa bordadeira da ilha. — As mulheres não usavam calças.

Virve Koster, de 91 anos, se tornou uma cantora folk famosa em toda a Estônia depis dos 70 anos. Ela ri quando comenta as mudanças que observa na ilha:

— Tudo mudou.

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As mulheres de Kihnu acreditam que tudo é possível. Se algo deve ser feito, uma mulher faz e outra fará também.

Matas fala sobre o conceito de feminismo, sempre recebido com espanto na ilha. O motivo do espanto? É claro que as mulheres são capazes. É claro que são competentes. Mas, não, homens e mulheres não são iguais. Para as habitantes de Kihnu, as mulheres provaram que podem fazer tudo o que os homens fazem, mas os homens não podem fazer o que as mulheres fazem.

— As pessoas acham que queremos provar alguma coisa sobre ter as mulheres no comando, mas isso simplesmente é a nossa cultura. E funciona. Não podemos imaginar diferente.