RIO - A campanha eleitoral já anunciava um clima hostil, com Jair Bolsonaro criticando artistas e atacando o principal mecanismo de incentivo à cultura no Brasil, a Lei Rouanet. Assim que tomou posse, ainda no dia 1º de janeiro, o presidente extinguiu o Ministério da Cultura, rebaixando a pasta a uma secretaria, conforme promessa feita meses antes. Mas haja imaginação para prever o que viria nos 12 meses seguintes. Estatais cortaram patrocínios para projetos culturais e censuraram espetáculos com temas políticos e questões de gênero . Numa cruzada moralista, o governo suspendeu edital que contemplava série LGBT , condenou “Bruna Surfistinha” e defendeu a aplicação de “filtros” sobre os projetos. Enquanto isso, raro foi o mês sem frases bombásticas, nomeações polêmicas, ofensas públicas (e, não custa lembrar, ainda temos nove dias para 2019 acabar).
— Foi um ano em que faltou rotina e sobrou sobressalto para quem trabalha com produção cultural — resume Daniele Torres Cordeiro, museóloga especialista em captação e diretora do site “Cultura e mercado”. — Há ainda a dimensão simbólica da demonização dos artistas, que vem desde o período eleitoral.
Vamos aos fatos. Logo no começo do ano, o BNDES extinguiu seu departamento de cultura. Em abril, a Petrobras cortou o patrocínio a 13 projetos de referência, como o Festival de Curitiba (de teatro) e o Anima Mundi. No mesmo mês, a Lei Rouanet ganhou novos limites de financiamento — espetáculos musicais, os mais prejudicados pela medida, tiveram o teto revisto só anteontem, passando de R$ 1 milhão para R$ 10 milhões.
— Tudo isso causou muita desconfiança por parte do patrocinador, o que afetou o setor ainda mais do que as mudanças na lei e na secretaria — diz a produtora de musicais Renata Borges.
Tela em transe
No audiovisual, as dificuldades foram constantes. O plano para uso dos cerca de R$ 700 milhões do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), que deveria ter sido definido até maio, só saiu do papel em dezembro . A notícia foi divulgada em nota oficial em que o presidente interino da Agência Nacional do Cinema (Ancine), Alex Braga, cita alguns resultados do ano: foram 635 projetos contratados e mais de R$ 526 milhões desembolsados. “A ideia de que a política de fomento ao audiovisual está paralisada é equivocada. Os números provam que, historicamente, nossos resultados são expressivos”, afirmou Braga, que não dá entrevistas desde que tomou posse, em agosto.
O discurso dele contrasta com a percepção da classe audiovisual. Produtores relatam que há um engarrafamento de centenas de projetos em apenas uma das etapas de aprovação na agência. Os números celebrados por Braga dizem respeito a produções contempladas por editais lançados até 2018. Antes abundantes, eles se limitaram a dois em 2019.
— O audiovisual não está parado, é fato, mas está travado sim — diz Leonardo Edde, presidente do Sindicato Interestadual da Indústria Audiovisual (Sicav). — Vários editais não tiveram resultado divulgado. A Ancine está com sua capacidade operacional comprometida há muito tempo, apesar do forte esforço para reverter a situação.
É bem verdade que a agência já vinha enfrentando uma crise por problemas anteriores. Após ficar na mira do Tribunal de Contas da União, chegou a paralisar os repasses de verbas para filmes e séries entre abril e maio . Christian de Castro, presidente desde 2018, foi afastado pela Justiça em agosto. E a Ancine periga acabar o ano com três cadeiras de diretoria vazias.
Para completar, a agência virou alvo de Bolsonaro em julho, e não por conta dos problemas técnicos. O presidente passou a defender mecanismos de controle sobre o conteúdo das produções. “Se não puder ter filtro, extinguiremos a Ancine”, ameaçou. Parte da bravata virou realidade em agosto, com a suspensão de um edital para a TV pública que contemplaria, entre outras, séries de temática LGBT (dois meses depois, a Justiça reverteu a decisão).
A censura não se limitou a projetos dedicados às telas. Em setembro, a Caixa Cultural cancelou apresentação da peça “Abrazo”, que trata de repressão. Em outubro, o CCBB suspendeu o espetáculo “Caranguejo Overdrive”, que contém críticas políticas. As decisões causaram espanto, protestos e brigas judiciais.
— Houve episódios de censura antes, como ( o da exposição ) “Queermuseu” ( em 2017 ). Mas constatamos que em 2019 eles foram mais recorrentes ou, ao menos, mais alardeados — constata a jornalista Thais Seganfredo, do Observatório de Censura às Artes, iniciativa de Porto Alegre que listou 27 casos de bloqueio à liberdade de expressão nos últimos 12 meses. — É interessante notar que houve um efeito cascata, com ações pipocando no legislativo e até no judiciário, além das esferas estaduais e municipais.
Foi por protestar contra a censura, posando para a revista “Quatro cinco um” como uma bruxa numa fogueira de livros, que a atriz Fernanda Montenegro atraiu a ira de Roberto Alvim, então diretor do Centro de Artes Cênicas da Funarte — ele a xingou publicamente de “sórdida” . A atitude gerou indignação em todo o país. Dois meses depois, o dramaturgo, que convocara artistas conservadores para criar uma “máquina de guerra cultural”, foi promovido ao cargo de Secretário especial da Cultura — àquela altura recém-transferida do Ministério da Cidadania para o do Turismo.
Alvim foi ágil. Colocou em instituições tradicionais, como a Biblioteca Nacional, nomes desconhecidos, sem currículos compatíveis com os cargos, que têm em comum o apreço pelas ideias de Olavo de Carvalho, o guru de Bolsonaro. Na Funarte, empossou Dante Mantovani, que já declarou que o rock leva ao satanismo . Para a Fundação Palmares, foi além: nomeou Sérgio Camargo, jornalista negro para quem a escravidão foi “benéfica” aos descentes. A Justiça suspendeu a nomeação.
A dança de cadeiras seguiu atropelada. No Iphan, a presidente escolhida pelo ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, acabou exonerada um dia após sua nomeação. O nome não agradou a Alvim. Na Secretaria do Audiovisual, ele colocou Katiane Gouvêa, cujas credenciais são integrar a Cúpula Conservadora das Américas. Duas semanas depois, os dois se desentenderam, e Alvim a demitiu. Para alívio do setor, André Sturm, ex-secretário de Cultura da cidade São Paulo, foi escolhido para o lugar.
E agora?
Com tudo isso, o que esperar de 2020? Procurado pelo GLOBO, Alvim não concedeu entrevista. O setor, porém, prevê sufoco, já que 2019 ainda teve muitos projetos garantidos por verbas do ano anterior. Agora, a redução de programação e de empregos é dada como certa.
— Ainda assim, vejo mais união — diz Daniele, do “Cultura e mercado”. — Houve certa histeria ao longo do ano, mas agora já conseguimos entender melhor a hora de tentar dialogar, de fazer barulho, de ir à Justiça... Isso vai ser muito importante no ano que chega.
Cultura em 2019: Uma cronologia
1º/1 Governo extingue Ministério da Cultura, que passa a ser secretaria, liderada por Henrique Pires.
15/4
Petrobras corta patrocínios de 13 projetos culturais incluindo festivais de cinema, música e teatro
24/4
Governo publica Nova Lei de Incentivo à Cultura
17/5
Ancine volta a operar normalmente após novo acórdão do Tribunal de Contas da União
18/7
Bolsonaro: 'Não posso admitir filmes como Bruna Surfistinha com dinheiro público'
19/7
Bolsonaro fala em extinguir Ancine 'se não puder ter filtro' ou transformar agência em secretaria
14/8
Bolsonaro sobre Ancine: 'Se pessoal se adequar dá pra mantê-la'
21/8
Governo Bolsonaro suspende edital com séries LGBT para TVs públicas
30/8
Bolsonaro afasta diretor-presidente da Ancine por ordem judicial
11/10
Governo recorre, perde, e Justiça mantém edital com produções LGBT
24/7
'Promover o renascimento do teatro brasileiro é nossa missão agora', diz Roberto Alvim
21/8
'Para ficar e bater palma pra censura, eu prefiro cair fora', diz Henrique Pires, ex-secretário especial de Cultura
10/9
Caixa Cultural cancela peça infantil sobre repressão, minutos antes de ela começar
13/9
Após proibição de peça, grupo teatral abre ação judicial contra Caixa Cultural
23/9
Ofensa de diretor da Funarte a Fernanda Montenegro indigna classe artística
1/10
Grupo teatral questiona CCBB após cancelamento de 'Caranguejo overdrive' em mostra comemorativa
5/10
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8/10
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25/10
Governo coloca roteirista de TV na presidência da Casa de Rui Barbosa
7/11
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7/11 Bolsonaro transfere secretaria de Cultura para Ministério do Turismo
27/11 Governo federal troca principais secretários da área de Cultura, a pedido de Roberto Alvim
3/12
Ancine manda retirar das paredes cartazes de filmes brasileiros
4/12
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10/12
Secretária do Audiovisual veta filme candidato ao Oscar (exibição na Ancine)
11/12
Katiane Gouvea é exonerada após duas semanas no cargo
19/12: Governo se atrapalha para anunciar novo teto da Rouanet para musicais