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Cultura

AC/DC volta com o som e as letras de sempre: 'Não sabemos fazer outra coisa'

Após tempos turbulentos, com mortes, surdez, prisão e aposentadoria, quinteto australiano lança 'Power up'
O grupo australiano AC/DC, com o baixista Cliff Williams (à esq.), o baterista Phil Rudd, o guitarrista Angus Young, o vocalista Brian Johnson e o guitarrista Stevie Young Foto: Divulgação
O grupo australiano AC/DC, com o baixista Cliff Williams (à esq.), o baterista Phil Rudd, o guitarrista Angus Young, o vocalista Brian Johnson e o guitarrista Stevie Young Foto: Divulgação

RIO - Poucos grupos musicais podem se orgulhar de ter criado um estilo, e de tê-lo visto ser copiado (ou, no mais desejável dos casos, ser adaptado) por milhares de outros grupos: Beatles, Rolling Stones, Ramones, Krafwerk... e o australiano AC/DC. Aos 47 anos de carreira, tendo sobrevivido às mortes de um vocalista (Bon Scott, em 1980) e de um guitarrista-fundador (Malcolm Young, em 2017) , o quinteto volta esta sexta-feira com um disco de estúdio novo em folha, “Power up”, o seu 17º. Em entrevista por Zoom, o inglês Brian Johnson, vocalista do AC/DC há 40 anos, se apressa em alertar os fãs que não esperem por surpresas:

— Muitas pessoas dizem que os discos do AC/DC são todos iguais. Mas nós somos as mesmas pessoas, não podemos mudar, não queremos chegar e dizer que temos uma nova forma de música... ninguém se importa com isso! O que o público quer é o AC/DC. E nós não sabemos fazer outra coisa.

O curioso é que o grupo estava basicamente a caminho do fim pouco antes da morte de Malcolm, aos 64 anos, por efeitos da demência de que se tratava há muito (e que o levaram, por sinal, a ser substituído pelo sobrinho Stevie, em 2014 ). Em julho de 2015, o baterista Phil Rudd foi preso por posse de drogas e ameaça de morte a um de seus funcionários na Nova Zelândia (e foi substituído por Chris Slade, que já tocara com a banda). Em abril de 2016, Brian Johnson se afastou dos shows por problemas de audição (quem cumpriu a agenda do AC/DC no seu lugar foi Axl Rose, dos Guns N’Roses ). Já em julho, depois da última apresentação da turnê do disco “Rock or bust”, o baixista Cliff Williams anunciou sua aposentadoria , após 39 anos com a banda.

O reencontro dos amigos do grupo se deu, como conta Brian, no ano seguinte, no funeral de Malcolm Young.

— Tínhamos acabado de perder o nosso melhor amigo, mas estávamos juntos, parecia que Malcolm tinha organizado aquilo! — recorda-se. — Algum tempo depois, os empresários e a gravadora Sony perguntaram a Angus ( Young, guitarrista e co-fundador do AC/DC com o irmão ): “Você gostaria de gravar mais um álbum?” Ele disse: “Vou telefonar a Cliff, Brian, Phil e a Stevie.” Ele me ligou eu disse que, sim, claro. Quando entramos no estúdio, aconteceu algo que não dá para explicar, uma ligação entre cinco pessoas que estiveram juntas por tanto tempo, dava para sentir a presença de Malcolm ali, dava para pegar a eletricidade no ar naquela sala. Sabíamos que o que viéssemos a fazer seria uma homenagem a Malcolm. E era melhor que fosse bom, porque ele estaria vendo!

"Power up" começou a ser gravado em 2018, em Vancouver — e uma foto de Brian Johnson e Phil Rudd num estúdio da cidade , publicada por um jornal local, espalhou mistério entre os fãs: estaria o AC/DC preparando um disco com seus ex-membros? Só no mês passado, a banda confirmou que estava de volta com um álbum novo e antecipou a música “Shot in the dark” . Agora, mistério só resta um: Brian, e os problemas de audição que o afligiam?

— Bem, existe uma coisa maravilhosa chamada tecnologia — explica. — E ela me ajudou muito, porque eu não conseguia ouvir nada no palco. Um homem maravilhoso, que é cientista e professor, veio até mim e disse que podia consertar minha audição. E eu achava que não, porque a coisa estava muito ruim, mas ele disse que tinha uma nova tecnologia. Nós trabalhamos juntos por dois anos e meio e funcionou. Esse foi o primeiro passo. Para gravar o disco eu não usei nada, apenas os ouvidos que me restaram. Era só eu, em uma sala, sem headphones, só com um microfone na mão, com Brendan O’Brien, o produtor, dizendo: “Ok, Brian, vamos lá!” E foi assim.

Composições do arquivo

As canções de “Power up”, conta Brian, foram compostas por Angus e Malcolm Young entre 2007 e 2008, quando a banda estava envolvida na gravação do álbum “Black ice”, que sairia em 2008.

— Eles literalmente sentaram juntos por semanas, meses, e compuseram um bocado de material. E, toda vez, segundo Angus, Malcolm chegava e dizia: “Isso soa como AC/DC!” Como já tínhamos muitas canções para o álbum, eles resolveram guardar aquilo tudo para o futuro. Infelizmente, Malcolm não teve tempo de gravar essas canções com a banda, e Angus sentiu que seu dever como irmão era garantir que essas músicas fossem registradas. Quando entramos no estúdio (para fazer “Power up”), nós sabíamos que teríamos que gravar essas músicas direito, ele teria ficado feliz com aquilo, tenho certeza. Acho que essas canções são o AC/DC atemporal.

Páginas elétricas: Livro conta a história do AC/DC a partir dos irmãos Young

Algumas das canções ficaram AC/DC até demais – com versos do calibre de “se você me rejeitar, vou pegar o que quiser / desrespeite-me e você vai se queimar” em pleno 2020, “Rejection” traz um alto potencial de problematização.

— Acho que se alguém for capaz de encrencar com uma letra dessas eu diria “vá procurar o que fazer, arrume um hobby!” — defende-se o vocalista. — Todas as canções do AC/DC sempre foram humorísticas. Meu Deus, se você for ouvir os raps, eles estão cheios de violência! O que contamos nas nossas músicas é somente papo de colegial, é revista em quadrinhos, não quer dizer nada de ruim. Você há de lembrar que nos anos 1980 fomos acusados de satanismo nos Estados Unidos – e quando criança eu tinha cantado no coro da igreja! Minha mãe ficou furiosa, ela era italiana perguntava porque chamavam o filho dela de adorador do demônio. Todas as letras do AC/DC são feitas para ser divertidas, para se cantar junto. Não tem nada de malévolo por trás delas.

Compromisso com os fãs

Aos 73 anos de idade, Brian Johnson diz que se há alguém a quem se deve creditar essa volta do AC/DC – e em seu formato mais clássico e puro — é aos fãs.

— Eles ficaram conosco por todos esses tempos, bons e ruins, acho que agora é a hora perfeita de lançar esse álbum, no meio dessa pandemia, que é uma coisa terrível — lamenta. — Em fevereiro estávamos na Holanda, ensaiando nosso show, e tudo estava indo maravilhosamente bem, não víamos a hora de voltar para os palcos. Mas aí soubemos da epidemia, mas era uma doença dos outros, era algo muito distante.... e o resto é história, ela nos pegou de surpresa e de repente parecia que ia ser o fim de tudo. Mas acredito mesmo que no que vem que a Covid-19 estará controlada e nós poderemos sair de casa. Seremos como tigres em uma jaula, é só abrir a porta que sairemos de lá rugindo!

O vocalista Brian Johnson e o guitarrista Angus Young com o AC/DC no Rock in Rio de 1985 Foto: Hipólito Pereira / Agência O Globo
O vocalista Brian Johnson e o guitarrista Angus Young com o AC/DC no Rock in Rio de 1985 Foto: Hipólito Pereira / Agência O Globo

E por falar em tigres rugindo, Brian compartilha suas boas memórias da única que vez que esteve no Rio de Janeiro com o AC/DC, em 1985, na primeira e histórica edição do Rock in Rio

— Estávamos animados, todos os grandes artistas estavam no festival. Nunca vou esquecer: nós estramos no palco aquela noite (de 15 de janeiro) e a multidão... foi a primeira vez na vida em que algo soava mais alto do que (a guitarra de) Angus. O que era aquilo?! Era uma paixão que não ficava nada a dever à nossa... Acho que àquela noite o público ganhou de nós! — confessa. — Saímos do palco absolutamente cobertos de suor, minha boina se dissolveu. Quando entramos no camarim eu só pensei: “Ufa! Não quero enfrentar esse público de novo!” Foi uma das primeiras vezes em que tocamos para uma multidão daquele tamanho (cerca de 250 mil pessoas, segundo registros), não era tão comum. As grandes bandas costumavam se apresentar em arenas para 10 mil, 20 mil pessoas no máximo.

Fora do palco, os dias e noites no Rio também foram memoráveis para Brian e o AC/DC:

— Fui pela primeira vez a uma churrascaria, era carne que não acabava mais! E descobrimos a caipirinha na noite de um passeio de barco. Alguns membros de nossa equipe chegaram a cair no mar, ficamos completamente bêbados!

Crítica

Um tributo em alta voltagem

Por Luccas Oliveira

Cotação: bom.

Capa de 'Power up', novo disco do AC/DC Foto: Divulgação
Capa de 'Power up', novo disco do AC/DC Foto: Divulgação

Cinco segundos de “Realize”, faixa que abre “Power up”, são suficientes para saber que trata-se de mais um disco do AC/DC. Estão ali a guitarra de Angus Young e o gritinho afinado de Brian Johnson, ingredientes indissociáveis para a fórmula de rock de alta voltagem que os australianos criaram há quase cinco décadas.

No parque dos dinossauros do rock clássico, porém, manter-se interessante para um público sedento e exigente é tão desafiador quanto inovar, e desse triunfo Angus e Brian devem se orgulhar. O primeiro por apresentar, quando ninguém esperava, num 2020 de poucas boas notícias, uma coleção de canções inéditas — com seus riffs de guitarra matadores, claro — que servem como escapismo perfeito para os fãs saudosos — e que poderiam ter sido lançadas na década de 1980, sucedendo o clássico “Back in black”, ou em 2007, quando foram originalmente compostas com o irmão Malcolm. O segundo por driblar a aposentadoria por invalidez e mostrar, em faixas como “Shot in the dark”, “Code red” e “Demon fire”, que nem a ameaça de surdez arrefeceu o ímpeto juvenil de sua voz.

Com esses pilares garantidos, a presença em espírito de Malcolm no estúdio e um retorno (também inesperado) cheio de gás da cozinha clássica formada pelo baterista Phil Rudd e o baixista Cliff Williams, o AC/DC entrega aos fãs o que eles esperam: rock atemporal (não nostálgico, nem datado), de fácil digestão, e uma conexão com tempos mais fáceis, em que o rock — e a música, em geral — podia se preocupar apenas com o entretenimento.