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Cultura

Alberto Manguel se prepara para comandar em Lisboa centro cultural formado por sua própria biblioteca

Escritor argentino doou seu acervo de mais de 35 mil volumes para Lisboa; 'Encaixotando minha biblioteca', título sobre o processo de sair da França com seus livros, é publicado no Brasil
O escritor argentino Alberto Manguel: "Minha biblioteca se converteu no meu duplo e está aí no mundo" Foto: David Levenson / Getty Images
O escritor argentino Alberto Manguel: "Minha biblioteca se converteu no meu duplo e está aí no mundo" Foto: David Levenson / Getty Images

Em 2015, quando já não aguentava mais a burocracia francesa, o escritor argentino Alberto Manguel encaixotou a biblioteca de mais de 35 mil volumes que ele mantinha em sua casa, um presbitério medieval nos arredores de Poitiers, e despachou-os para um depósito em Montreal. Após criticar publicamente as políticas econômicas do então presidente Nicolas Sarkozy, ele passou a ser vítima do que ele considera uma perseguição burocrática: as autoridades francesas exigiam dele comprovantes de compra de cada livro. Na biblioteca de Manguel, havia exemplares raros, como uma Bíblia do século XIII e um volume no qual Jorge Luis Borges esboçou seu conto “A busca de Averróis”. Adolescente, Manguel acompanhava o escritor cego ao cinema e lia para ele.

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Manguel partiu para Nova York e, no ano seguinte, voltou para a Argentina, onde, a convite do presidente Mauricio Macri, dirigiu até 2018 a Biblioteca Nacional, posição que também já foi ocupada por Borges. Para aplacar a dor de se separar de seus livros, Manguel, autor de vários títulos sobre a leitura , começou a escrever uma elegia cheia de digressões que recebeu o título apropriado de “Encaixotando minha biblioteca” e acaba de sair no Brasil.

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No ano passado, o escritor de 73 anos assistiu à ressurreição de sua biblioteca. A Prefeitura de Lisboa se ofereceu para abrigar os 35 mil livros em um Centro de Estudos da História da Leitura a ser inaugurado no ano que vem num palacete neoclássico do século XIX — a pandemia atrasou os planos. Escritores como Olga Tokarczuk , Salman Rushdie , Margaret Atwood e Chico Buarque foram convidados para participar do Conselho Honorário do Centro. Em entrevista por e-mail ao GLOBO, Manguel contou que está aprendendo português, embora ainda pene para entender o que os lisboetas dizem.

Interior do Palacete dos Marqueses de Pombal, em Lisboa: casarão histórico está sendo reformado para se transformar no Centro de Estudos da História da Leitura, com acervo composto pela biblioteca de Manguel Foto: Divulgação/José Frade/EGEAC
Interior do Palacete dos Marqueses de Pombal, em Lisboa: casarão histórico está sendo reformado para se transformar no Centro de Estudos da História da Leitura, com acervo composto pela biblioteca de Manguel Foto: Divulgação/José Frade/EGEAC

Quais “circunstâncias ignóbeis” o forçaram a desmontar sua biblioteca na França?

Não quero perder tempo falando de burocracia, mas basta dizer que, ao ter criticado publicamente as políticas de Sarkozy, me converti em vítima de um amigo dele.

Em “Encaixotando minha biblioteca”, você escreve que “o ritual da ressurreição talvez seja mais frequente do que concordamos em admitir, e acontece em uma infinidade de maneiras”. Como é ver sua biblioteca “ressuscitar” em Lisboa?

Toda ressurreição significa uma mudança de identidade. Lázaro era um antes de morrer e outro depois de ressuscitar. Minha biblioteca, até a ida para Lisboa, era um reflexo da minha identidade de leitor. Agora, vai se converter em uma identidade pública, portuguesa. Vou ser só mais um leitor. Meus livros chegaram a Lisboa em outubro de 2020, armazenados no Arquivo Municipal, onde estão sendo catalogados por uma equipe de bibliotecárias maravilhosas. O edifício no qual funcionará o Centro de Estudos da História da Leitura está sendo restaurado. Esperamos poder inaugurá-lo no fim de 2022. Foi muito difícil ficar longe dos livros, porque preciso deles quando escrevo, e agora só posso confiar no desmemoriado que cuida da minha biblioteca mental. Minha biblioteca se converteu no meu duplo e está aí no mundo. Eu, por outro lado, envelheço tranquilo em minha poltrona.

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Você diz que não gosta de emprestar seus livros. Por que, então, disponibilizá-los em uma biblioteca pública?

Quando decidi doar a biblioteca, sabia que a relação dos meus livros com os leitores deixaria de ser singular para ser plural. Já não tenho ciúmes dos meus livros. Me sinto como um pai cujos filhos se casaram e foram dividir um teto com outra pessoa.

Como a biblioteca refletiu sua identidade ao longo dos anos?

Eu me reconheço nos meus livros. Durante minha adolescência, via o meu reflexo em “Alice no País das Maravilhas”. Depois, me reconheci em “O homem que foi quinta-feira”, de G.K. Chesterton , e nos poemas de San Juan de la Cruz. E também em “O centauro no jardim”, de Moacyr Scliar, e nos contos de William Saroyan. Agora, leio Dante e me vejo refletido em sua árdua peregrinação.

Que livros vão continuar em sua biblioteca pessoal e não estarão no Centro de Estudos da História da Leitura?

Minha edição de “Alice no País das Maravilhas”, a Bíblia que pertenceu à minha avó, a edição de bolso em que li “A divina comédia” pela primeira vez e alguns poucos livros mais.

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Você descreve as bibliotecas como um “sonho imperfeito de ordem”. Já descobriu qual o melhor método para organizar uma?

Quando minha biblioteca era só minha, os livros estavam organizados, em sua maioria, pelo idioma em que foram escritos. Havia muitas exceções: livros de teologia, sobre a lenda de Dom Juan e do Judeu Errante, obras de Dante, de Borges. Quando forem colocados nas estantes do Centro, serão organizados segundo as regras de Portugal.

Uma das digressões de “Encaixotando minha biblioteca” fala sobre a impossibilidade de sabermos o instante em que os livros surgem na mente dos escritores. Você se lembra o instante em que lhe veio a ideia de escrever esse?

Não exatamente. Quando senti a dor de ter que deixar minha casa e encaixotar minha biblioteca, pensei que poderia encontrar algum consolo escrevendo uma elegia.

Você tem o costume de ler um canto da “Divina comédia” todas as manhãs. Li que, desde que se mudou para Lisboa, você começa o dia lendo literatura portuguesa. O que você anda lendo?

Estou lendo “A sagrada família”, um romance magnífico de Sandro William Junqueira. Já tinha lido o primeiro romance dele, “Um piano para cavalos”, uma distopia que se equipara à trilogia “Maddaddam”, de Margaret Atwood, e “Perelandra”, de C.S. Lewis. A poesia portuguesa também me interessa muito. Estou lendo Margarida Vale de Gato, cujos laços com o mundo clássico me fascinam. Para entender bem a poesia portuguesa, traduzo alguns versos para o inglês de vez em quando.

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Como vai a vida em Lisboa? Já está falando português?

Me sinto lisboeta. Lisboa é uma cidade-ideia para uma pessoa da minha idade: lenta, respeitosa, cortês. Dizer isso é um lugar comum, mas a luz de Lisboa é única. É a luz que Dante descreve ao entrar no Jardim do Éden. Estou tentando aprender a língua portuguesa, porque confundo com espanhol e italiano. Consigo ler português, mas falar é difícil porque os portugueses comem a maior parte das sílabas. É mais fácil entender os brasileiros.

Serviço:

"Encaixotando minha biblioteca: uma elegia e dez digressões"

Autor: Alberto Manguel. Tradução: Jorio Dauster. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 184. Preço: R$ 44,90.