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Cultura

Ana Martins Marques: 'O poema ensina a não esperar explicações'

Com olhar atento sobre a vida em redor, poeta mineira reinventa tradição modernista e conquista público e crítica
A poeta mineira Ana Martins Martins. Funcionária pública e discípula do conterrâneo Carlos Drummond de Andrade, ela defende que o poema é "lugar para pensar" Foto: Mauro Figa / Divulgação
A poeta mineira Ana Martins Martins. Funcionária pública e discípula do conterrâneo Carlos Drummond de Andrade, ela defende que o poema é "lugar para pensar" Foto: Mauro Figa / Divulgação

Certa vez, caiu nas mãos da poeta mineira Ana Martins Marques uma entrevista em que poeta carioca Armando Freitas Filho recordava seu “encontro inaugural com a poesia”, ainda na adolescência, ao ganhar do pai um disco que trazia, de um lado, poemas declamados por Manuel Bandeira , e do outro, por Carlos Drummond de Andrade . Após ler essa entrevista, tendo achado “essa história do Armando muito bonita”, Ana se esforçou para lembrar de seu próprio encontro inaugural com a poesia e, em especial, com os versos de Drummond, mas nada lhe vinha à mente.

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— Para mim, é como se a poesia sempre tivesse estado aí. Minha mãe lia poemas para mim e para meus irmãos desde que éramos pequenos. Assim que comecei a ler poemas, passei a escrever poemas. E essa história, ao contrário da história do Armando, não tem graça nenhuma — diz Ana, num e-mail ao GLOBO que repete algumas das características que aparecem também em seus versos, como a concisão, a referência ao cotidiano, a interrogação da própria poesia e um arremate que o leitor não havia previsto.

Nascida em 1977, em Belo Horizonte, Ana é uma das mais lidas, elogiadas e premiadas poetas brasileiras em atividade. Um poema da poeta carioca Yasmin Nigri , intitulado “Ana Martins Marques”, afirma que “Ana é discreta/ e tem muito senso de humor/ Ana sorri mais/ muito mais do que eu suponho”. Ana não esconde a timidez, que antes achava ser “a forma mais extrema de atenção”, como atesta um poema de “A vida submarina”, seu livro de estreia que voltou recentemente às livrarias ao lado do recém-lançado “Risque esta palavra”, ambos publicados pela Companhia das Letras. Lançado originalmente em 2009, pela editora mineira Scriptum, “A vida submarina” reúne os poemas com os quais ela venceu o Prêmio Literário da Cidade de Belo Horizonte em 2007 e 2008.

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Ana também já ganhou os prêmios Oceanos e da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) com “O livro das semelhanças”, de 2015, e já dividiu um pódio com Drummond. Em 2012, a Biblioteca Nacional concedeu o Prêmio Alphonsus de Guimaraens ao livro “Carlos Drummond de Andrade: Poesia 1930-62”, edição crítica da poesia do itabirano organizada por Júlio Castañon Guimarães e publicada pela Cosac Naify. Após protestos de escritores, que invocaram uma cláusula do edital que exigia que os próprios autores inscrevessem seus livros (Drummond morreu em 1987), a Biblioteca entregou o prêmio a Ana, que havia conquistado o segundo lugar com “Da arte das armadilhas”. Graças ao escritor, ela também conseguiu compreender sua “posição de funcionária-poeta”, cuja “tradição meditativa e irônica” é descrita por Drummond, funcionário público por mais de 40 anos, na crônica “A rotina e a quimera”. Ana é redatora e revisora na Assembleia Legislativa de Minas Gerais.

Capa de "A vida submarina", reedição, pela Companhia das Letras, do livro de estreia da poeta mineira Ana Martins Marques Foto: Reprodução / Divulgação
Capa de "A vida submarina", reedição, pela Companhia das Letras, do livro de estreia da poeta mineira Ana Martins Marques Foto: Reprodução / Divulgação

'Linguagem tátil'

Ana usa a poesia para “investigar nossa vizinhança com os objetos, o modo como neles se depositam, como uma espécie de pátina, as memórias ou o desejo”. Em seus versos, há relatos de viagem, imagens marítimas e objetos cotidianos. Vários poemas de “A vida submarina” fazem referência aos cômodos e móveis da casa. Num deles, as panelas observam “a mulher sozinha o jornal do dia/ o café solúvel/ e duas xícaras irônicas no aparador”. Em “Risque esta palavra” há uma série de poemas dedicados ao cigarro e à arte de (parar de) fumar, escritos após a poeta abandonar o vício, há três anos.

— Tem uns versos do Murilo Mendes de que eu gosto muito: “Minhas ideias abstratas,/ De tanto as tocar, tornaram-se concretas”. Dar concretude às coisas abstratas, singularizá-las, é próprio da literatura, essa “ciência do singular” — diz Ana. — O que eu gosto nesses versos é sobretudo a ideia do toque. A poesia é linguagem tátil. De tanto tocarmos, as ideias tornam-se concretas.

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A habilidade de Ana para “flagrar o incomum nas coisas comuns” é, na opinião da escritora Maria Esther Maciel, professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, uma das razões pelas quais a poeta conquistou tanto o elogio da crítica quanto a admiração do público não especializado.

— Ana Martins Marques é uma poeta hábil no manejo das palavras e dos recursos da linguagem poética e dotada de uma imaginação extraordinária. A singularidade de sua dicção e clareza de seus versos, aliados de um olhar surpreendente sobre a vida ao redor, os afetos e as coisas do dia a dia, a aproximam de leitores mais abertos ao fluxo das emoções, das surpresas e dos assombros — afirma Maria Esther. — Ana reinventou, no contexto da poesia brasileira contemporânea, elementos do legado modernista, sobretudo de Drummond e Bandeira, ao mesmo tempo em que mantém um vivo diálogo com poetas de seu tempo. Suas reflexões sobre o fazer poético, ainda que remetam ao modernismo, adquirem um grande frescor, uma vitalidade fluida.

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A meditação sobre a linguagem é recorrente nos versos de Ana. Em “Risque esta palavra” há uma seção (“Noções de linguística”) composta por 14 poemas dedicados à investigação da linguagem, além de um sobre o silêncio. Em “A vida submarina”, ela já havia dito não entender por que “em geral se acredita que o poema/ não é lugar para pensar”.

— É difícil definir que tipo de pensamento, conhecimento ou saber, se é que se pode falar assim, é possível encontrar num texto literário. Acho que no poema há sempre uma tensão entre o sentido e a ausência de sentido, entre a palavra e o silêncio. O poema é um jeito de estar na linguagem que convida a uma espécie muito singular de conhecimento, mas também a uma espécie de não saber, que ensina a não esperar explicações — diz Ana.

Capa de "Risque esta palavra", novo livro da poeta mineira Ana Martins Marques, publicado pela Companhia das Letras Foto: Reprodução / Divulgação
Capa de "Risque esta palavra", novo livro da poeta mineira Ana Martins Marques, publicado pela Companhia das Letras Foto: Reprodução / Divulgação

Serviço:

“A vida submarina”

Autora: Ana Martins Marques. Editora: Companhia das Letras. Páginas : 144. Preço: R$ 44,90.

“Risque esta palavra”

Autora: Ana Martins Marques. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 118. Preço: R$ 44,90.