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Cultura

Antonio Carlos Secchin: ‘Poesia de João Cabral de Melo Neto é complexa, nunca confusa’

Crítico, que organizou nova 'Poesia Completa' do autor, também lança edição ampliada de estudo sobre o pernambucano
Antonio Carlos Secchin, poeta e membro da ABL, é um dos maiores especialistas na obra de João Cabral de Melo Neto Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo
Antonio Carlos Secchin, poeta e membro da ABL, é um dos maiores especialistas na obra de João Cabral de Melo Neto Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo

RIO - O centenário de João Cabral de Melo Neto foi uma oportunidade para o poeta e imortal da ABL Antonio Carlos Secchin voltar a mergulhar na obra de um velho conhecido. Considerado o maior especialista no trabalho do gênio pernambucano, Secchin participou com dois lançamentos importantes para a efeméride. Além de organizar a nova “Poesia Completa” do autor, está reeditando uma versão ampliada de seu “João Cabral de ponta a ponta” , conjunto de textos realizado ao longo de quatro décadas.

Como foi voltar a Cabral?

De algum modo são projetos complementares: a trajetória do poeta e a minha trajetória crítica, no sentido de tentar passo a passo acompanhá-la. Fico feliz por ambos os livros saírem praticamente juntos no ano em que se prestam tantas justas homenagens a João Cabral. Tive a ventura de ser amigo dele, que, mesmo em momentos de graves problemas pessoais, como a cegueira que o acometeu no fim da vida, nunca deixou de me acolher fraternalmente.

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Quais são as novidades em “Ponta a ponta”?

Além de ensaio inédito, pude acrescentar, comparativamente à edição publicada em 2014, uma entrevista, uma palestra e um belo caderno de imagens com raridades bibliográficas do poeta.

O livro tem um texto inédito sobre a irregular amizade entre Drummond e Cabral...

Foram grandes amigos que, em meados da década de 1950, praticamente romperam relações, sem que houvesse motivo aparente, e sem que nenhum dos dois assumisse o afastamento, entretanto acintoso. Circularam versões fantasiosas sobre a ruptura. Creio que ela se deu, sobretudo, por divergências de projetos literários, somadas a episódios de mal-entendidos e ressentimentos recíprocos. Cabral, de “aluno” de Drummond, no início dos anos 1940, logo passou a ser um “mestre”, com uma poética conflitante, quando não hostil à de seu antigo tutor. Penso que aí reside a base do dissenso.

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Algo que fica claro ao ver a obra de Cabral junta é que, em tempos de redes sociais e de poema-minuto, ela não é instantânea, leva tempo para criar seu efeito. Acredita que isso a torna mais difícil para o leitor de hoje?

Sim, o leitor tende a ser muito apressado, embora eu não saiba exatamente por ou para quê. Não por acaso , celebrou-se, desde o Modernismo, o poema-minuto. Quanto mais curto, melhor. De fato, para um mau texto, é até desejável que ele acabe bem rápido. Cabral está no campo oposto a isso. Não é um poeta difícil, o problema é deparar-se com um leitor “fácil”. E a facilidade não é atributo da poesia cabralina, que, sendo complexa, nunca se mostra confusa. Ao contrário, até acusam-na de ser lógica em excesso.

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No prefácio de "Toda poesia", você lembra a história de Cabral com Vinicius, em que o pernambucano reclama da “coração” e pede mais “fígado” na poesia. O que isso significa exatamente?

Cabral não entendia como , dispondo o corpo humano de tantas vísceras, os poetas tratavam de privilegiar apenas uma, o coração. Claro que a blague era um modo de alfinetar aqueles que chamava pejorativamente de “líricos”, poetas que só falavam de si e dos sentimentos amorosos. Numa espécie de revanche antilírica, João, no poema “O relógio”, utilizou o vocábulo como sinônimo de máquina: “aquela bomba motor/ (coração, noutra linguagem)”. Também fustigou Pablo Neruda, autor do livro España en el corazón : “A Espanha é uma coisa de tripa./ Por que “Espanha no coração”?/.../ dessa tripa de mais abaixo/ como escrever sem palavrão?/ A Espanha é coisa dessa tripa/ (digo alto ou baixo?), de colhão”. Conforme se leu, o poeta não demandava apenas o fígado. Só não queria o coração.

"Toda poesia" traz poemas inéditos de Cabral. Ainda há mais material de Cabral para surgir?

Em termos de poesia, creio que pouco. Mas a Alfaguara está preparando, para 2021, um alentado volume com a prosa cabralina, de alta qualidade, aliás. Depois, restaria ainda resgatar sua correspondência e as entrevistas que concedeu, marcadas por muita agudeza e alguma ironia.