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Cultura

Aos 91 anos, Lima Duarte se reinventa como 'contador de casos' na internet

Ator fala da saudade dos amigos que já partiram e sobre a nova vida de 'influencer' em seu sítio no interior
Lima Duarte, aos 91 anos, vive isolado em seu sítio em Indaiatuba, interior de São Paulo. É de lá que ele grava os vídeos que são publicados no Instagram. Foto: Arquivo Pessoal
Lima Duarte, aos 91 anos, vive isolado em seu sítio em Indaiatuba, interior de São Paulo. É de lá que ele grava os vídeos que são publicados no Instagram. Foto: Arquivo Pessoal

RIO — “Eu sou mesmo um contador de histórias”, diz Lima Duarte, entre risos, ao ouvir que tem feito sucesso nas redes sociais. Semanalmente no Instagram, o ator, de 91 anos, grava vídeos contando “causos” da vida privada, de bastidores das novelas feitas em seus mais de 70 anos de carreira, dá dicas de séries e livros e sempre arruma tempo para recitar Fernando Pessoa ou Guimarães Rosa.

— Meus netos fazem tudo, eu só falo. Conto porque tem coisas que vi, ou vivi, que podem ser interessantes para a moçada. Porém, não tenho a menor ideia de como funciona essa web. Acho interessante as novidades, vejo graça em algumas coisas, mas a verdade é que tenho um imenso pavor do virtual — diz o veterano.

As gravações são feitas no sítio em Indaiatuba, em São Paulo, onde o artista mora. O cenário varia entre a sala — que funciona como um museu particular, abrigando desde cartazes de filmes que fez até roupas de personagens icônicos — e o jardim, próximo aos passarinhos que gosta de alimentar.

— Eles se reúnem aqui e comem tudo — diverte-se o artista, respondendo em vídeo às perguntas para esta reportagem.

Lima se distrai com tudo isso enquanto se prepara para começar a gravar, assim que possível, a segunda temporada de “Aruanas”, série do Globoplay.

— Estou preso neste paraíso há um ano e não saio para nada. Ouço música e leio o dia inteiro. Também vejo novelas antigas. Gosto porque me lembro do que aconteceu além das cenas. Você não queira saber o que é, ou melhor, o que eram os estúdios. Orgulhos, egos, ódios, amores, tudo no mesmo lugar — suspira, com saudade.

É nesse espírito que o mineiro vibra com a reprise de “O salvador da pátria” (de 1989), no canal Viva, a partir de 12 de abril. Lima Duarte interpretou o boia-fria Sassá Mutema na trama que tinha um fundo político no momento em que o país voltava a ter eleições diretas para presidente.

— É um personagem que fiz do fundo da alma, e que merece uma atenção um “tiquinho” maior. Agora é o agronegócio, mas, na minha época, era o pequeno negócio (risos) , plantava o que eu gostaria de comer. Não tinha essas pendengas de Brasília. E a novela falava desse momento de transição do país. O Sassá era um jardineiro que tocava nas flores e elas vicejavam. Virou político, isso se perdeu. Também foi um homem que não sabia ler, escrever e amou errado a professorinha (vivida por Maitê Proença) . É uma história linda.

E que atravessou a tela e ganhou contornos na vida real. Lima Duarte e Maitê tiveram um breve romance, dito por ele, negado por ela ao longo dos anos. Em entrevistas, a atriz cita o carinho e revela ter encontrado no colega um apoio no momento em que vivia a doença do pai. Mas hoje a relação se perdeu.

— Maitê deve ter amado o Sassá. Nós brincamos, nos divertimos, mas nunca mais a vi. A vida nos levou para outros cantos, mas torço sempre para ela ser feliz. Digo do fundo do meu coração.

Apesar da aura que os personagens lhe deram ao longo da vida, Lima, que se casou três vezes, é econômico em relação a outras paqueras.

— Sempre falava para as meninas terem cuidado comigo porque sou do signo de Áries com ascendente em Escorpião. Não faço ideia do significado, não entendo de astrologia, mas era engraçado. Acho que nunca nenhuma mulher me amou mesmo. Eu não me amo. Amo mesmo meus personagens.

Dessas paixões, o ator não deixa de destacar aqueles que foram importantes para fazer críticas políticas. Além de Sassá, estão marcados Zeca Diabo, de “O bem-amado” (disponível no Globoplay), e Sinhozinho Malta, de “Roque santeiro”, entre tantos outros. Nos vídeos, fala com carinho da amizade com o autor Dias Gomes (1922-1999), com quem militou no Partido Comunista Brasileiro, e das críticas inteligentes que ele fazia. Na juventude, carregavam a energia de denunciar as mazelas do mundo. No presente, Lima lamenta a perda dos que já não estão mais aqui.

— Sinto falta dos meus amigos. Tantos já se foram, Ao mesmo tempo, não lembro mais deles aqui.

Por falar em perdas, o ator se preocupa com a situação da Covid-19 no país.

— Penso nos netos, filhos. O que tem acontecido conosco? Pragas, tragédias, vírus, a presidência… Nossa Senhora, quantas bobagens e mentiras temos visto. Sem contar a grosseria brutal. O homem falou que a vacina da China não presta. Mas estou me sentindo muito bem vacinado. E eu amo a sabedoria oriental — diz o artista, que já tomou as duas doses do imunizante.

A voz de Lima Duarte só fica embargada quando o ator é convidado a revirar no baú da memória a primeira lembrança que tem da vida.

— Minha mãe era epiléptica. Eu, com 7 anos, ficava na cozinha, de chão de terra, ao lado dela. Me lembro da vez em que ela desmaiou e eu a abracei, chorando, tentando erguê-la. Naquele tempo, não se sabia o que era. Falava-se que a pessoa teve um “acesso”. Esse termo ainda me intriga. Acesso ao diabo, à alma, ao cérebro? É muito forte para mim até hoje.