Cultura

Após surto criativo na gravidez, Céu dá à luz 'APKÁ'

Retomando som retrô do elogiado "Tropix", novo disco traz canção política e inédita de Caetano
A cantora Céu Foto: Fábio Audi / Divulgação
A cantora Céu Foto: Fábio Audi / Divulgação

RIO - Totalmente carregada, charged mesmo — literal e figurativamente, era como se sentia a cantora Céu , de 39 anos, durante a concepção de “APKÁ!” , seu quinto álbum de estúdio. Produzido durante a gravidez de seu segundo filho, Antonino, o disco veio de um surto de criatividade — uma bateria elétrica a toda — que ela tematizou em “Ocitocina (charged)”, canção que leva o nome do chamado “hormônio do amor”, responsável também por estimular as contrações do parto.

— É meio como se eu fosse um elemento eletrônico, mas ao mesmo tempo super primitivo. Eu quis brincar nesse disco de falar sobre coisas contrastantes. Hiperdigitalismo e hiperrealismo. São muitas as polarizações hoje no mundo, é um momento de confronto — diz Céu. — Isso é o que a gente está vivendo em todos os seus aspectos, seja nas estranhezas e nas coisas interessantes.

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E quando se fala nas polarizações do mundo, é inevitável pensar em política. Um tema que não escapou à artista ao compor “Forçar o verão”, uma das faixas de “APKÁ!” (o título do disco, aliás, veio da onomatepeia gritada pelo bebê Antonino para designar satisfação plena). “Uma nuvem se aproxima do cartão postal / feito um convidado que ninguém quer receber / mas quando ele vem / não quer mais sair”, escreveu ela — e para bom entendedor, meio verso basta:

— Foi um grito meu de muita raiva, decepção e tristeza com tudo o que está acontecendo. Essa música aconteceu no governo Temer, mas se estende para o período político em que a gente vive.

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As questões do Brasil contemporâneo também orientam “Pardo”, canção inédita de Caetano Veloso que deixa muito no ar em versos como “nenhum orixá poderá desmanchar o que houve lá”.

— Eu pedi a uma canção inédita e ele topou. Só mesmo estando no puerpério para ter essa audácia! — brinca Céu. — O Caetano tem esse dom de captar tudo o que está acontecendo, tudo o que é emergente. Na verdade, a canção é sobre uma relação homoafetiva masculina, e ele propôs que o canto fosse o de uma mulher. Caetano fala de todas essas questões que estão sendo gritadas e revisitadas e repensadas.

Detalhe da capa de "APKÁ!", álbum da cantora Céu Foto: Reprodução
Detalhe da capa de "APKÁ!", álbum da cantora Céu Foto: Reprodução

Uma curiosidade em relação a “APKÁ” é que ele traz duas canções em inglês, compostas por brasileiros: “Eye contact”, da própria Céu; e “Make sure your head is above”, de Fernando Almeida, o Dinho, cantor e guitarrista da banda psicodélica goiana Boogarins — atração assídua em festivais de rock alternativo nos EUA e Europa, com quem Céu fez show no Rock in Rio de 2017 .

— Ele ainda não tinha feito uma canção em inglês. E veio uma letra com o mote de você trazer as suas imperfeições à tona ( “bring your imperfections aboard” ) que tem a ver com o que eu estou falando no disco. Teve uma conexão — comenta. — Há muitos anos que eu viajo todo ano para fora e represento o Brasil cantando em português, falando em português. Mas tem muita gente ali que me escuta e que também quer entender. Achei interessante trazer um pouquinho de inglês no disco novo, eu queria falar para todos.

Em “Eye contact”,  por sinal, ela contou com a colaboração do duo Tropkillaz , dos DJs Zegon e Laudz, um dos nomes mais conhecidos internecionalmente da música eletrônica brasileira. Eles produziram o “Vai malandra” de Anitta e andaram fazendo shows com Céu no ano passado.

— Eu conheço o Zegon há muito tempo e sei que eles não fazem só aquele som pelo qual os Tropkillaz são mais conhecidos. Eles têm um domínio de corpo versus beat que faz as pessoas pularem loucamente. Participei do show deles na França agora há pouco e realmente eles sabem fazer isso, mas eles podem transitar em outro lugar — conta a cantora. — É um encontro divertido em que a gente está trazendo um pouco de cada um, mas sob outro olhar.

Com show carioca marcado para o dia 7 de dezembro, novamente no Circo Voador , Céu diz até hoje não saber de qual universo faz parte: o das cantoras do mainstream ou das do underground.

— No Brasil não parece existir muito o caminho do meio, de novo a gente está falando de polarização! — diverte-se. — Eu ainda estou buscando o meu lugar, não me considero totalmente indie e não me considero totalmente mainstream. No Prêmio Multishow de 2016, o “Tropix” ( seu álbum anterior ) levou muitos troféus, mas as pessoas não me conheciam. Fica esse hiato.

CRÍTICA de "APKÁ!" ( por Sérgio Luz)

Em 2016, Céu se arriscou — e acertou — ao lançar “Tropix”, no qual mergulhou num som retrô-contemporâneo recheado de batidas eletrônicas e sintetizadores, a mesma abordagem de “APKÁ!”.

Mas se “Tropix” era propositalmente mais frio, uma espécie de experimento estético gélido, agora a cantora e compositora apresenta mais matizes de luzes quentes, mesmo com uma melancolia sempre à espreita, como apontam suas abertas angústias com o Brasil de hoje e canções como “Forçar o verão” e “Pardo” (Caetano Veloso).

Essa dualidade — entre a decepção com os rumos do país e uma pulsão vibrante de vida — é vista tanto nas 11 faixas quanto no próprio título, “APKÁ!”, uma interjeição primal de seu filho para expressar alegria e regozijo.

Apesar de não mudar novamente sua música, Céu consegue aprimorar um trajeto que começou a traçar há três anos, com caprichada produção de Pupillo e do francês Hervé Salters. Mas o que poderia ser um projeto preguiçoso prova-se o amadurecimento de uma ideia que ainda tem frutos para colher, com composições mais inspiradas e inspiradoras.

Cotação: bom.