Exclusivo para Assinantes
Cultura

Atração da Flup e curadora do Afropunk, Ami Weickaane fala sobre a arte como arma da luta não violenta

Senegalesa radicada na França vai participar de duas mesas da festa, que começa nesta quarta-feira
Ami Weickaane, curadora e gerente de cultura do festival Afropunk Foto: Alun Be / Divulgação
Ami Weickaane, curadora e gerente de cultura do festival Afropunk Foto: Alun Be / Divulgação

RIO — Nascida em Dakar, no Senegal, e radicada na França, Ami Weickaane é curadora de um dos mais prestigiados festivais de cultura negra do mundo. O Afropunk nasceu no Brooklyn, em 2005, e se espalhou por Atlanta, Londres, Paris e Joanesburgo. Ponto de encontro de diversas vertentes da moda, música, dança e empreendedorismo negro, o evento por onde passaram nomes como Janelle Monáe terá pela primeira vez uma edição brasileira, marcada para novembro de 2020, em Salvador.

LEIA MAIS: Abolicionista, negra e feminista: conheça Maria Firmina dos Reis, a primeira romancista do Brasil

PROGRAMAÇÃO: Flup 2019 começa esta quarta: feminismo negro e poesia falada em destaque

Aos 46 anos, Weickaane é uma das principais atrações da Festa Literária das Periferias (Flup) , que começa nesta quarta-feira, no Museu de Arte do Rio (MAR). E em dose dupla. Ela fala na quinta-feira, às 14h, na mesa “Questão de cor”, que divide com o artista plástico Alexis Peskine ; e na sexta, às 20h, na mesa “A carne mais barata do mercado não é mais a carne negra”, ao lado da ativista Funmilola Fagbamila , uma das pioneiras do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam).

“Bruxa dos tempos atuais” e “mulher negra raiz”, como se define, Weickaane, que não dá detalhes da versão brasileira do festival, defende a cultura como forma de alcançar conquistas sociais. A arte, ela diz, é a arma da luta não violenta, uma “fortaleza que usa a sensibilidade, o intangível, para transformar o mundo de uma forma sustentável”.

Para quem ainda não conhece o Afropunk, como você descreveria o festival?

É um lugar seguro para quem não era suficientemente visto: o punk negro, o criativo negro, os artistas negros e, globalmente, a cultura negra. Ele surge dois anos após o documentário “Afro-punk” (2003), sobre a cena punk e alternativa da comunidade negra dos Estados Unidos. Foi quando o tatuador ( e diretor do filme ) James Spooner se uniu a um dos produtores do longa, Matthew Morgan, para organizar um festival no Brooklyn. O foco era reunir artistas e fãs de punk negros para compensar sua invisibilidade em uma cena predominantemente branca. Em 2008, Spooner deixou o navio e o leme para Matthew, que se associou à produtora Jocelyn Cooper. E eles expandiram o conceito: hoje além do punk, existe hip-hop, R&B, neo-soul, pop ou electro, além de diversos tipos de arte alternativa no Festival Afropunk.

Muitos movimentos negros contemporâneos veem a cultura como fator central para o ativismo. Como enxerga isso?

Rumi ( poeta e teólogo sufista ) diz: “Quando as pessoas te jogam pedras, é porque você é uma árvore cheia de frutos. Eles veem fartura em você. Não desça ao nível deles jogando pedras de volta, mas jogue seus frutos para que as sementes possam inspirá-los a mudar seus modos.” Então, para mim, arte e cultura são uma arma. Não aquelas armas que atiram em você como uma pedra — mas uma que se infiltrará gradual e sutilmente até se espalhar de forma incontestável. A arte é uma fortaleza que usa sensibilidade, o intangível, para transformar o mundo de uma forma sustentável. No ativismo e militância dos movimentos negros, acredito que a combinação de formas e iniciativas pode fazer com que nossas vozes sejam ouvidas e minimizar ao máximo as desigualdades que estamos sofrendo.

A moda e o visual são sempre destaques dos festivais. Como define esteticamente essa cultura?

É uma cultura de comunhão, de poder expressar e celebrar a si mesmo em um lugar seguro. Meu próprio estilo? É livre, eu me visto como estou me sentindo, e em respeito a meus ancestrais para me celebrar todos os dias. Meu estilo é o de uma mulher negra de raiz, que se intitula uma bruxa desta época.

Como começou sua relação com o festival?

Eu estava no público, na primeira edição em Paris, e pude perceber que não tinha nada a ver com as fotos que vi da edição do Brooklyn — era muito pequena. Na verdade, era normal porque o festival estava chegando ali pela primeira vez. Depois de alguns anos participando, tive a oportunidade de conhecer Jocelyne e Matthew e surgiu a ideia de levar o Afropunk para a África de língua francesa. Nasceu então minha primeira colaboração, que foi produzir o “Afropunk take over Dakar” em minha cidade natal, em maio de 2018. Dois meses depois, eu estava trabalhando com curadoria de filmes africanos. A colaboração foi estabelecida e logo em seguida entrei para a equipe.

E como é o seu processo de curadoria para o Afropunk? O que procura nos artistas?

A curadoria, para mim, é provocar algo. Depois de validadas ideias e conceitos, passo para o processo criativo, em que procuro um fluido, uma substância ativa que possa se ajustar ao nosso estado de espírito e destacar artistas e levar a experiência da Afropunk ao nível mais alto. Não vou só pensar em fazer uma exposição, vou escolher uma mensagem, peças, artistas e uma história que dê prosseguimento ao discurso do festival. A seleção de artistas também é cuidadosa, um artista que não compartilha os valores que defendemos dificilmente pode se encontrar em uma exposição da Afropunk.

Qual é o perfil do frequentador do festival?

O público da Afropunk muda e quebra continuamente os limites que cercam a identidade, definindo-se além dos limites estreitos de gênero, sexualidade e classe social. O que une nosso público é um conjunto compartilhado de valores que, em sua essência, defende uma autoaceitação radical. A identidade é complexa, em camadas e em constante evolução para o público. A melhor aposta é deixá-los dizer quem são. O que podemos dizer que eles são é: educados. Culturalmente diversos, financeiramente independentes. Mentalmente globais e punks de “f*der”.