Cultura

Buena Vista, 25 anos depois: produtor revela bastidores do disco que reconduziu a música cubana ao mundo

Embargo americano, inundação, má fiação, apagões, alegre dispersão dos músicos e desconfiança da gravadora: Ry Cooder conta a saga da gravação e lançamento do álbum que agora ganha reedição ampliada
Os cantores Compay Segundo e Omara Portuondo no show do Buena Vista Social Club no Canecão, Rio de Janeiro, em 1999 Foto: Fernando Quevedo / Agência O Globo
Os cantores Compay Segundo e Omara Portuondo no show do Buena Vista Social Club no Canecão, Rio de Janeiro, em 1999 Foto: Fernando Quevedo / Agência O Globo

RIO - Guitarrista que tocou com Eric Clapton e os Rolling Stones , mas ficou famoso pela trilha do filme “Paris, Texas” (1984, de Wim Wenders), o americano Ry Cooder recebeu em 1996 um convite do produtor Nick Gold: o de ir a Havana para participar de um disco que reuniria músicos cubanos a outros do Mali (no ano anterior, Cooder tinha feito o álbum “Talking Timbuktu” com a grande estrela musical do país africano, Ali Farka Touré). Por problemas com vistos, os músicos do Mali não puderam viajar, então o guitarrista e o produtor resolveram gravar um disco só com a velha guarda cubana pré-Fidel Castro. Nascia assim o “Buena Vista Social Club”.

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— Nick Gold achava que a mistura de cubanos e africanos ia funcionar, já eu não tinha tanta certeza. Mas como ele me pediu para ajudá-lo, eu fui. Eram tipos diferentes de música, ritmos diferentes, resolvi que ia tentar — conta por telefone Ry Cooder, em uma das entrevistas para divulgar a reedição comemorativa de 25 anos do disco “Buena Vista Social Club”, que chega ao streaming no dia 17 de setembro, com faixas inéditas das sessões de gravação conduzidas pelo guitarrista. — Havia muitas canções que não pudemos botar no disco, e canções muito boas. Mas ele saiu na época como CD simples porque a gravadora não quis um duplo, achavam que ninguém compraria!

Capa da reedição de 25 anos do álbum "Buena Vista Social Club", do grupo Buena Vista Social Club Foto: Reprodução
Capa da reedição de 25 anos do álbum "Buena Vista Social Club", do grupo Buena Vista Social Club Foto: Reprodução

Só na Europa, onde o disco se tornou um dos maiores sucessos da história da (então denominada) world music , foram mais de um milhão de cópias vendidas. Nos EUA, ele ganhou um Grammy de melhor álbum tradicional latino tropical. Rapidamente, o “Buena Vista” virou um espetáculo, que pôs na estrada músicos que pouco se apresentavam desde os anos 1950, alguns nonagenários (o cantor Compay Segundo), octogenários (o pianista Rubén Gonzaléz) ou meros septuagenários (o cantor Ibrahim Ferrer e a cantora Omara Portuondo, sobrevivente do grupo e ainda na ativa, aos 90 anos ( leia entrevista ). A turnê mundial se tornou um bem-sucedido documentário de Wim Wenders em 1999, ano em que o show foi visto no Brasil (onde o disco vendeu mais de 100 mil cópias).

A intimidade de Ry Cooder com Cuba vinha dos nos 1970, quando ele esteve brevemente em Havana, em um cruzeiro de jazz com nomes como Dizzie Gilespie, Stan Getz e Earl Hines.

— Alguns dos músicos da velha guarda cubana, que eu conhecia pelos discos, ainda estavam vivos. Mas não pudemos passar muito tempo na cidade porque estávamos hospedados no navio. De toda forma, percebi que havia muita música maravilhosa por lá, que eu poderia ver um dia — diz Cooder, que logo depois se tornou pai e teve que adiar os planos indefinidamente.

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Em 1996, tendo viajado a Havana via México (por causa do embargo do governo americano, que mais tarde o obrigou a pagar uma multa de US$ 25 mil pela violação da lei), Ry Cooder encontrou uma cidade não muito grande, em que “todo mundo conhecia todo mundo”:

— A maioria dos músicos estava por perto, embora não estivesse trabalhando tanto porque eles eram prejudicados pelas políticas do governo, que considerava aquele tipo de música algo um tanto burguês. Todos aqueles estilos antigos estavam eclipsados mas não desapareceram, porque você não pode fazê-los desaparecer. Música é música, as pessoas não deixam de gostar dela.

O cantor Compay Segundo (à esquerda) e o produtor Ry Cooder em gravação de disco do grupo Buena Vista Social Club, em 1996 Foto: Nick Gold / Divulgação
O cantor Compay Segundo (à esquerda) e o produtor Ry Cooder em gravação de disco do grupo Buena Vista Social Club, em 1996 Foto: Nick Gold / Divulgação

Ao reunir no estúdio da Empresa de Grabaciones y Ediciones Musicales (EGREM) aquele grupo de músicos que nos anos 1940 e 50 costumava tocar guajiras, son e boleros no requintado Buenavista Social Club de Havana, Cooder viu a chama reacender. Mas conta que enfrentou alguns desafios:

— O estúdio era no segundo andar, havia rombos no teto e a água da chuva entrava. Tivemos que mudar de lugar o piano de cauda para que ele não fosse inundado. E não entendíamos porque a velocidade do gravador vivia variando. Mandamos trazer um outro da Cidade do México, mas isso não resolveu o problema. Aí descobrimos que não só o gravador, mas a mesa de som, os alto-falantes e todo o equipamento estava ligado em uma só tomada! Tivemos que mudar toda a fiação da sala. Mesmo assim, a energia era cortada entre 14h e 16h. Cuba era um país muito pobre e não tinha como consertar os geradores.

Zelando pelo fluxo

Ry Cooder diz ter tentado não interferir na magia daquele encontro entre os melhores músicos de Cuba.

— Eu tinha toda aquela sabedoria ali na sala e era um estrangeiro, de Los Angeles. Então perguntei quais eram as músicas de que eles gostariam de gravar. Com Compay Segundo foi fácil, porque ele só queria gravar as suas próprias canções, que eram sensacionais e todos os músicos sabiam tocar — conta. — Mas os cubanos são muito casuais, gostam muito de conversar, o tempo não significa muito para eles. E a gente tinha um cronograma, com poucos dias para realizar todo o trabalho, então eu tinha que zelar pelo fluxo.

Distante dos músicos cubanos desde 2000, quando eles participaram de seu disco “Mambo sinuendo”, Ry Cooder se exime de dar opiniões sobre a política cubana e as recentes manifestações populares no país. Tudo o que ele sabe é que a música de “Buena Vista Social Club” permanece viva em 2021.

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— Discos conseguem ir a todos os lugares, especialmente discos tão bons quanto este. O “Buena Vista” encontrou o seu lugar em lugares onde eu nunca fui — analisa Cooder. — E é bom pensar que os estilos antigos e esses músicos mais velhos não precisam ser descartados e esquecidos.

Para Cooder, o problema da modernidade, “do capitalismo”, é que algumas coisas que realmente são boas, especialmente aquelas que foram feitas antes dos anos 1960, acabam “sendo deixadas de lado”.

— Eram coisas baseadas em formas antigas, com um tipo de beleza que não temos mais. Certamente há algo no samba, por exemplo, que merece ser revivido e reouvido — observa ele.