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‘Censura não se debate, se combate’, diz Cármen Lúcia em audiência pública com artistas no STF

Reunião teve participação de atores como Caio Blat e Dira Paes e o cantor Caetano Veloso
A ministra Cármen Lúcia com Caetano Veloso no STF Foto: Jorge William / Agência O Globo
A ministra Cármen Lúcia com Caetano Veloso no STF Foto: Jorge William / Agência O Globo

BRASÍLIA - Artistas, profissionais do setor audiovisual e representantes do governo se reuniram ontem no Supremo Tribunal Federal (STF). Motivada pela mudança do Conselho Superior de Cinema (CSC) do Ministério da Cidadania para a Casa Civil, e a diminuição de representantes do setor em sua composição, a conversa acabou tratando sobretudo de censura.

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Estiveram presentes na audiência atores como Caco Ciocler, Dira Paes, Caio Blat, o cantor Caetano Veloso, e cineastas como Luiz Carlos Barreto e Marina Person. Também compareceram representantes de entidades, como Daniel Caetano, da Associação Brasileira de Cineastas. E, por parte do governo, o secretário executivo do Conselho Superior de Cinema, João Vicente Santini, o secretário do audiovisual do Ministério da Cidadania, Ricardo Rihan, e a coordenadora da secretaria de audiovisual, Jéssica Paulino.

No início da sessão, a ministra do STF Cármen Lúcia fez questão de dizer que aquilo “não era um debate”.

— Li que este Supremo Tribunal Federal iria debater a censura no cinema. Errado. Censura não se debate, censura se combate, porque censura é manifestação da ausência de liberdades, e a democracia não a tolera.

A ministra é relatora de uma ação ajuizada pela Rede Sustentabilidade contra o decreto do governo que que estabelece mudanças no CSC.

‘Há boicote’, diz Caetano Veloso

A ação da Rede defende que a redução da participação de membros da sociedade civil visa “esvaziar o caráter plural e democrático do Conselho”. Para o partido, o decreto é uma ingerência política que fere a Constituição por propor “censura ideológica” ao cinema.

Entre outras responsabilidades, o Conselho elabora políticas para o cinema nacional, estimula a presença do conteúdo brasileiro no mercado e propõe atualizações da legislação relacionada à indústria cinematográfica.

A partir do decreto, o colegiado passou a ter mais representantes do governo do que do setor do cinema, com sete ministros, três representantes do setor e dois da sociedade civil. Anteriormente, a divisão era igualitária, nove membros do governo e nove da indústria e da sociedade civil.

Caetano Veloso, que lembrou a época da ditadura, suas músicas censuradas e o exílio em Londres, disse após o evento que “a ameaça à liberdade de expressão é grande”.

— É uma censura que se dá através do boicote da produção, seja a montagem de um espetáculo que eles ( do governo ) não consideram de acordo com o que pensam, seja a produção de um filme que eles acham que ofende o tipo de moral que supõem defender — observou.

O ator e diretor Caco Ciocler afirmou que os artistas “estão sentindo na pele” a censura:

— Não é à toa que estamos aqui reunidos, por mais que exista uma legislação que garanta que não há censura.

Dira Paes, atriz, compartilhou das ideias de Ciocler. Segundo ela, a palavra censura não combina com o vocabulário artístico.

— Nós queremos respeito, dignidade, eu não aceito ser atacada porque eu não ataco ninguém a não ser com argumentos, eu não xingo ninguém, eu não entro na rede social de ninguém pra dizer "você é isso, você é aquilo" porque eu tenho profunda noção da integridade que eu represento — afirmou.

O cineasta Renato Barbieri, membro do Conselho Superior de Cinema, defendeu o crescimento da indústria do audiovisual, citando um alcance internacional da cultura brasileira com os filmes “A vida invisível” e “Bacurau”. Ele ressaltou a importância da liberdade de expressão para os artistas.

— Olhar para a nossa indústria audiovisual com desconfiança ou desprezo seria um gesto antipatriótico, portanto, é mister que nós, produtores e artistas, tenhamos total liberdade de expressão, um valor tão bem defendido pela Carta Magna de 88 — disse.

O secretário executivo do Conselho Superior de Cinema, José Vicente Santini, que também é secretário executivo da Casa Civil, afirmou que a mudança da estrutura mostra que o governo coloca o cinema como prioridade:

— Podem ter certeza que os conselhos mais importantes da República são presididos ou secretariados pela Casa Civil. Se esse conselho voltou para a Casa Civil, onde foi criado, é porque há uma prioridade.

'Diretrizes do governo'

Se garante que não há cerceamento de liberdade de expressão nos mecanismos de incentivo ao cinema, o secretário do audiovisual, Ricardo Rihan, acredita ser natural que as linhas de fomento sigam as “diretrizes do governo”:

— No fomento direto, no caso do Fundo Setorial do Audiovisual, a sugestão das linhas costuma seguir as diretrizes do governo. Mas mesmo assim são aprovadas por um colegiado que tem representação do governo e da sociedade civil.

A cineasta Marina Person aproveitou para lembrar a suspensão do edital que previa financiamento para séries LGBT, entre outros temas, para a TV pública . Ela contou que tinha um projeto de série concorrendo nesta linha, e iria tratar da diversidade dos novos nomes da MPB. A Justiça acabou determinando que o edital fosse retomado.

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— O cancelamento desse edital é um silenciamento de projetos que dão voz para essa parcela da sociedade brasileira — disse a cineasta.

Em sua fala, o ator Caio Blat aproveitou para ler um trecho de "Grande Sertão: Veredas" (ele é o protagonista da peça de Bia Lessa inspirada no livro de Guimarães Rosa), em que o jagunço Riobaldo revela sua paixão por um companheiro, Diadorim, sem saber que ele é uma mulher que se veste de homem.

— Guimarães Rosa talvez não poderia desenvolver a maior obra-prima da literatura brasileira se ele dependesse desse edital.

Na mesma fala, Blat relatou que colegas que trabalham com cinema estão engavetando projetos que lidam com diversidade por medo de se expor ao governo. Ele dá um exemplo prático. Segundo o ator,  a mostra de Domingos Oliveira na Caixa Cultural do Rio de Janeiro teve cinco filmes retirados da programação sem explicações.

— Cinco filmes foram retirados da programação sem nenhuma explicação, alguns por causa do título. "Todo mundo tem problemas sexuais", uma das comédias mais inofensivas de Domingo Oliveira, foi cortada. Um filme que eu fiz, "BR 716", um dos últimos filmes do Domingos, foi cortado da mostra, eu fui censurado.