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Cultura

Chick Corea: gênio do jazz com ouvidos abertos para o Brasil

O pianista, morto na terça, fez fusion-samba com Flora Purim e Airto Moreira e mudou a vida de Amaro Freitas
O pianistas Amaro Freitas com Chick Corea, no festival de Montreux, em 2019 Foto: Divulgação
O pianistas Amaro Freitas com Chick Corea, no festival de Montreux, em 2019 Foto: Divulgação

RIO — Americano descendente de italianos, Chick Corea usou as teclas do piano (e dos sintetizadores) para levar a música o mais longe que pudesse . Sua morte, aos 79 anos , na terça-feira (mas só anunciada na quinta), por um câncer raro, recentemente diagnosticado, não encerra apenas uma das mais longas e profícuas carreiras de um músico da primeira linha do jazz. Ela interrompeu uma trajetória ainda em curso, de um pianista que passou pelas grandes revoluções artísticas de sua era e, ainda assim, manteve ouvidos e cabeça abertos para a riqueza musical do mundo.

Nascido Armando Anthony Corea em 1941, em Chelsea, Massachusetts, Chick Corea foi apresentado ao piano aos 4 anos de idade pelo pai trompetista. Imerso no jazz em casa, ele estudou piano clássico e ouviu os pianistas e mestres do bop Horace Silver e Bud Powell, influências perceptíveis no seu toque. Corea começou a tocar jazz ainda adolescente e, após o colegial, estudou na Columbia University e na prestigiada escola Juilliard antes de seguir sua carreira no jazz.

Nos anos de formação, o pianista tocou nas bandas dos percussionistas (e expoentes do jazz latino) Mongo Santamaria e Willie Bobo, além de acompanhar estrelas como o flautista Herbie Mann e o saxofonista Stan Getz. Em 1966, demonstrou rara maturidade em seu primeiro LP como líder, “Tones for Joan's bones” (só lançado dois anos depois, junto com o disco que o projetaria, “Now he sings, now he sobs”). Chick Corea ainda tocaria com a cantora Sarah Vaughan antes de ser indicado como futuro substituto do prodígio Herbie Hancock na banda do consagrado trompetista Miles Davis — o que mudou a sua vida.

Revolucionário permanente do jazz, Miles estava iniciando seus experimentos com o rock e convenceu Corea a passar para o piano elétrico e a, junto com ele, perseguir uma música viril, abstrata e sensorial nos discos “Filles de Kilimanjaro” (1968), “In a silent way” (69) e o aclamado “Bitches Brew” (70). Era o início do jazz-rock, também conhecido como fusion.

Ao deixar a banda de Davis, Corea era outro: escolheu inicialmente tocar jazz acústico de vanguarda com o quarteto Circle. E em seguida, formou o grupo Return to Forever, com forte inspiração no samba-jazz e um casal de músicos brasileiros que tinha se radicado nos Estados Unidos: a cantora Flora Purim e o percussionista Airto Moreira, com quem o grupo gravou “Light as a feather” (1972) e “Return to forever” (73), discos nos quais figuraram alguns dos mais conhecidos temas do pianista: “Spain”, “500 miles high”, “Crystal silence” e “La fiesta”.

Airto e Flora seguiram com suas carreiras solo e Corea mergulhou fundo, com o Return to Forever no fusion que havia ajudado a fundar, ao lado de outras bandas de sucesso como Weather Report e Mahavishnu Orchestra. Chamado pelo pianista para integrar o grupo aos 19 anos de idade, o guitarrista Al Di Meola lamentou nas redes sociais a morte do mentor: “Chick era meu músico favorito e RTF era minha banda favorita. Foi uma jornada musical ininterrupta e inovadora. Estávamos na vanguarda de um novo idioma (...) Obrigado, querido Chick pelo legado que você deu ao mundo e por acreditar em mim e me dar a chance de tocar com você, meu herói!”

Nos anos seguintes, Chick Corea manteve seus projetos acústicos e ampliou a variedade de iniciativas, como duetos com o vibrafonista Gary Burton e Herbie Hancock, um quarteto com o saxofonista Michael Brecker, trios com o baixista Miroslav Vitous e o baterista Roy Haynes e até mesmo alguma música clássica. Em 1985, ele formou um novo grupo de fusion, The Elektric Band, com o baixista John Patitucci e o baterista Dave Weckl. E, para equilibrar, também formou uma banda acústica com os mesmos Patitucci e Weckl.

Lançado em 1991 por Chick Corea com a Akoustic Band, o álbum “Alive” iria, anos depois, mudar a vida de um menino pobre da periferia de Recife: Amaro Freitas, pianista reconhecido — no exterior, inclusive — como um dos maiores novos nomes da música instrumental brasileira.

— Aquilo para mim foi um choque, eu vivia em ambiente evangélico e senti na música dele o espírito da liberdade. Chick Corea foi um cara que transitou entre o pop, o erudito, o jazz e as músicas brasileira e indiana. Ele estava sempre estudando, sempre preocupado em aprender e compartilhar — conta Amaro.

Multidão na praça

Em 2014, Chick Corea foi ao festival Mimo, em Olinda, e além de se apresentar com seu grupo de jazz-rock, The Vigil, ministrou uma masterclass. Amaro Freitas, que na época trabalhava como músico em uma pizzaria, não pôde participar das aulas. Mas viu o show de Corea na Praça do Carmo.

— Eram umas 10 mil pessoas assistindo. Se acontecesse qualquer coisa ali, toda a cena musical do Nordeste acabava ali. Desceu Paraíba, Fortaleza, Natal... foi um show espetacular — recorda-se ele, que enfim conheceu o ídolo em 2019, na Suíça, nos bastidores do Festival de Montreux. — Eu levei um vinil do meu disco “Rasif” e falei da importância que a sua música teve na minha vida.

Celebrado por brasileiros como o pianista Antonio Adolfo (que gravou “Crystal silence” em álbum de 2013) e Hermeto Pascoal (que foi mais longe, com a saudação musical “Um abraço, Chick Corea”), o americano não sossegou até o fim da vida: fez duetos com a jovem pianista japonesa Hiromi e seguiu gravando discos com o Vigil e com a Spanish Heart Band, com o qual reviveu o flamenco de Paco de Lucía.

“O espírito de Chick era sempre gentil, como um mestre e uma criança ao mesmo tempo... trazendo curiosidade, humor e calor para cada espaço que eu compartilhei com ele”, relembrou, no Instagram, o multi-instrumentista inglês Jacob Collier, atração do novo jazz. “O mundo perdeu uma vasta força musical hoje, mas está infinitamente mais rico com o profundo legado que Chick deixou.”