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Cultura

Cineasta em crise e Brasil ‘escamoteado’ inspiram filme de Felipe Bragança

Coprodução com Portugal, ‘Um animal amarelo’ lida com trauma da herança escravocrata
Cena do filme "Um animal amarelo", de Felipe Bragança Foto: Divulgação
Cena do filme "Um animal amarelo", de Felipe Bragança Foto: Divulgação

Quando começou a desenvolver o roteiro de “Um animal amarelo”, em 2013, Felipe Bragança partiu de uma inspiração autobiográfica, sem imaginar que o tema ganharia uma dimensão cada vez menos pessoal com o passar do anos. O filme conta a história de um cineasta brasileiro que, atormentado pelo passado escravocrata da família, se lança em viagem de autoconhecimento a Moçambique e a Portugal. Originalmente concebido como uma “melancólica fábula tropical”, o filme teve sua estreia no fim de semana na seção competitiva Big Screen do 49º Festival de Roterdã.

— A premissa era usar a busca do personagem por uma identidade para abordar um Brasil meio escamoteado, do passado escravocrata das famílias brasileiras, sobre o qual se falava muito pouco — aponta Bragança, de 39 anos. — Mas, de repente, a gente dá de cara com o presidente Bolsonaro declarando publicamente que ele não precisa se preocupar com temas relacionados à escravidão, porque nunca teve um escravo. O que o país passou nos últimos seis anos fez com que algumas questões ligadas à história pessoal do protagonista se tornassem mais coletivas, universais, e foram absorvidas pelo roteiro.

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O que alimentaria uma “nota de pé de página” no argumento inicial, como diz o realizador, acabou ganhando papel significativo na trama. “Um animal amarelo” é centrado na figura de Fernando (Higor Campagnaro), cineasta que não encontra condições artísticas e financeiras para continuar fazendo filmes. Obcecado pela memória do avô (Herson Capri), de passado violento, e perseguido pelo espírito de um moçambicano que, desde criança, lhe acenava com um futuro de privilégios e grandes conquistas, ele investe numa inglória incursão pelas terras de seus antepassados, na África e na Europa.

Atriz portuguesa Isabél Zuaa, que está em "Um animal amarelo" Foto: Divulgação
Atriz portuguesa Isabél Zuaa, que está em "Um animal amarelo" Foto: Divulgação

Aventura no garimpo

Aonde quer que vá, Fernando é confrontado com sua herança colonial. Em Moçambique, tenta se aventurar pelo garimpo de pedras preciosas, mas é dissuadido por locais capazes de produzir gemas com seus próprios corpos, de modo “orgânico”.

— Os moçambicanos percebem que uma vida de opulência desconectada de suas origens resulta na perda de suas habilidades mágicas. De certa forma, isso espelha a jornada de Fernando, no que diz respeito a ancestralidade — explica Bragança —Alguns locais dizem que branco nunca vai encontrar pedras preciosas de verdade lá, só moçambicano. Em uma das vilas, visitei um líder tribal que afirma que eles sabem reconhecer uma pedra valiosa, sem gastar fortunas e destruir montanhas, como as empresas estrangeiras fazem. Dentro da provocação meio tropicalista que o filme propõe imaginei: e se as pedras preciosas saíssem de dentro deles, mesmo?

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“Um animal amarelo” é resultado da combinação de esforços da produtora brasileira Duas Mariolas, de Bragança, e a portuguesa Som e a Fúria, e estreará em Portugal em maio. O lançamento brasileiro está previsto para o segundo semestre. Bragança diz que, diante do impasse em que vive o cinema brasileiro, acuado por suspensão e cortes de linhas de fomento do governo e pelas indefinições da Ancine, a Agência Nacional do Cinema, a coprodução passou a ser fundamental para a viabilização de projetos de perfil mais autoral.

— O curioso é que a gente viveu um longo ciclo em que buscávamos a coprodução não por causa do dinheiro, mas pelas articulações que ela permitia, como visibilidade em festivais e venda em outros países. “Um animal amarelo” foi feito com pouco dinheiro português, porque o mais importante era ter um produtor português, determinante na estratégia de difusão fora do Brasil. Mas talvez meu próximo filme tenha que ser uma produção europeia, e a minha companhia como coprodutora minoritária – observa Bragança.

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Atualmente, o diretor trabalha numa nova versão de “Macunaíma”, a partir do livro de Mário de Andrade. Lançado em 1928, o clássico modernista sobre o caráter antropofágico da cultura brasileira já foi adaptado para o cinema por Joaquim Pedro de Andrade, em 1969. Mas Bragança acredita que é chegado o momento de fazer uma revisão sobre as origens e especificidades da identidade brasileira. O cineasta aguarda recursos da Ancine para iniciar o processo de pesquisa por diferentes estados do país. Ao lado dele no projeto, estão o antropólogo Hermano Vianna e a atriz indígena Zahy Guajajara (da minissérie “Dois irmãos”).

— Estou obcecado pelas ideias modernistas dos anos 20 do século passado. O que a gente quer dizer, a partir da crise de identidade que começou lá atrás, em 2012, 2013, quando fala em cultura brasileira pujante? — questiona o diretor.