Exclusivo para Assinantes
Cultura

Como as redes sociais estão mudando nossa maneira de pular carnaval

Se a graça da folia já foi se ocultar na fantasia, a brincadeira agora é ser visto — muito visto
Foliões fazem pose no bloco Céu na Terra, em Santa Teresa, em 2019 Foto: Brenno Carvalho
Foliões fazem pose no bloco Céu na Terra, em Santa Teresa, em 2019 Foto: Brenno Carvalho

RIO - Jhenyfer Dulz , digital influencer e estrela de reality shows, mais conhecida como Bifão, protagonizou uma das cenas mais comentadas deste pré-carnaval.

Enquanto passava por um bloco em São Paulo, foi filmada gravando vídeos de si mesma no celular. Até aí, normal. O que chamou atenção nas imagens é que, ao abaixar o aparelho, seu rosto passava de eufórico a sério instantaneamente. A internet não perdoou: “é a felicidade de Instagram”.

Não é só Bifão que vai a blocos mostrar que é a “cara da alegria”. Desde 2019, a tag #Carnaval2020 já foi usada 1,5 milhão de vezes no Instagram. Estudiosos do carnaval e psicólogos apontam uma mudança. Se antes a folia era hora de pôr uma máscara, se fantasiar, ser outro, agora o impulso é inverso: ser visto.

Samba, sorriso e selfie: a fórmula do carnaval nos blocos Foto: Brenno Carvalho
Samba, sorriso e selfie: a fórmula do carnaval nos blocos Foto: Brenno Carvalho

Sobre as máscaras que ocultavam foliões, o historiador carioca Luiz Antonio Simas lembra que seu uso era forte no século XIX. Na época, os mascarados se aproximavam e perguntavam “você sabe quem sou eu?” para em seguida sumir na multidão. Esse costume antigo aparece ainda em canções como “Noite dos mascarados” ( “Quem é você? Diga logo que eu quero saber”) , de Chico Buarque, e “Máscara negra” (” Na mesma máscara negra, que esconde teu rosto, eu quero matar a saudade” ), de Zé Keti.

“A gente saiu da tradição do velamento para a do desvelar-se. As redes alteram o comportamento do folião Estamos na era do 'eu estou aqui', 'eu quero ser encontrado', 'a fantasia que eu uso é essa'. Fomos do mistério do 'quem é você?' ao escancaramento do 'sou eu'. ”

Luiz Antonio Simas
Historiador, autor de vários livros sobre cultura popular e já chamado de 'pensador do carnaval'

A arte de se representar

Para o psicanalista Marcelo Veras, autor do livro “Selfie, logo existo” (Currupio), a tendência foliã é parte de uma mutação global. Extravagâncias antes reservadas à intimidade (como as do sujeito na canção “Camisa amarela”, de Ary Barroso, que dá perdido na companheira o carnaval inteiro) hoje são expostas pelos próprios sujeitos (vide o sucesso das notícias de famosos e dos reality shows de anônimos e celebridades).

Aliado ao fetiche pela intimidade, dá força ao fenômeno a possibilidade de compartilhar e, claro, editar imagens. Os recursos de aplicativos como o Instagram estariam provocando uma forma não só de estar no carnaval, mas de se representar nesse lugar.

— Quando a vida está ruim, você pode representar no aplicativo uma vida onírica. O carnaval possui essa expressão imagética poderosa para fazer isso — analisa Veras. — O carnaval era o lugar de soltar a franga e, com o império das imagens, virou lugar da exibição dos corpos. O lança-perfume na mão deu lugar ao smartphone.

Amigos fazem selfie no bloco Céu na Terra, em 2019, em Santa Teresa Foto: Brenno Carvalho
Amigos fazem selfie no bloco Céu na Terra, em 2019, em Santa Teresa Foto: Brenno Carvalho

Mas as redes não precisam ser só um estímulo ao narcisismo, pondera o psicanalista Christian Dunker, autor de “Reinvenção da intimidade” (Ubu). Claro: há quem publique posts e stories apenas para criar um efeito de satisfação, criando um abismo entre a realidade e suas idealizações (“é aquele uso pornográfico, com orgasmo falso”, diz Dunker). E há quem use os apps como aliados da folia, ferramentas para exercitar a liberdade e a criação de representações — ou seja, usar fantasias e máscaras, sejam elas reais ou imaginárias.

— Estou falando do folião que, para usar um exemplo da arte fotográfica, está mais para um Cartier Bresson. É o sujeito que capta a beleza de um instante e sabe que o que importa não está sendo mostrado no quadro — teoriza Dunker. — Isso é um caminho mais próspero.

Máscara que revela

Para entender por que os foliões estão cada vez mais dando as caras no carnaval, pode-se também inverter o raciocínio: a máscara não seria necessariamente uma ferramenta para esconder, mas para expôr nossa autoimagem mais íntima.

Como lembra o próprio Simas, a questão foi abordada por Aldir Blanc em “Fantasia”, parceria com João Bosco: “Custei a compreender que fantasia/ É um troço que o cara tira no carnaval/ E usa nos outros dias por toda a vida.”

Essa é a mesma abordagem feita pelo professor do Instituto de Artes da Uerj e criador do Centro de Referência do Carnaval, Felipe Ferreira.

“A máscara sempre foi uma forma de revelação do interior do mascarado. O que acontece hoje é uma exacerbação desse mascaramento, pois revelamos nossas 'máscaras' pela exposição constante nas redes. Criamos fantasias para mostrar o que queremos ser.”

Felipe Ferreira
Professor do Instituto de Artes da Uerj e criador do Centro de Referência do Carnaval

Por falar em revelações: Bifão falou com a reportagem. Ela esclarece aos leitores e a seu milhão de seguidores que, no flagrante carnavalesco em que foi acusada de “simular felicidade”, estava na verdade trabalhando num vídeo patrocinado. Mas reconhece:

— Às vezes as pessoas fazem as coisas no Instagram para agradar aos outros, e não agradam nem a elas mesmas.