Exclusivo para Assinantes
Cultura

Como será o novo especial de Natal do Porta dos Fundos, 'Teocracia em vertigem'

Acompanhamos as gravações do programa, que terá alto teor político, referência à família Bolsonaro e resposta aos ataques recebidos pelo grupo por causa de Jesus gay
Fabio Porchat como Jesus Cristo no novo especial de Natal do Porta dos Fundos, 'Teocracia em vertigem' Foto: Divulgação/Daniel Chiacos
Fabio Porchat como Jesus Cristo no novo especial de Natal do Porta dos Fundos, 'Teocracia em vertigem' Foto: Divulgação/Daniel Chiacos

Faz calor e uma mosquitada zune em torno de uma equipe de filmagem reduzida, num terreno baldio em Guaratiba, Zona Oeste do Rio. No centro da cena, recebendo os cuidados de uma maquiadora que usa um escudo facial, está Thati Lopes. Ela vive Maria Madalena em “ Teocracia em vertigem ”, o aguardado especial de Natal que entrará em cartaz no canal do Porta dos Fundos no YouTube em 10 de dezembro.

A alta temperatura e o som dos mosquitos são só deduções: a visita ao set de gravação foi bem diferente do usual. Aconteceu via Zoom, especialmente para esta reportagem. “Teocracia em vertigem” é uma resposta aos ataques de que o grupo foi alvo após representar Jesus como homossexual no especial do ano passado, “ A primeira tentação de Cristo ”. Terá forte conotação política, promete Fabio Porchat, que agora encarna Jesus Cristo e é o autor do roteiro.

Em janeiro, um desembargador do Tribunal de Justiça do Rio mandou suspender a exibição de “A primeira tentação..." a pedido do Centro Dom Bosco de Fé e Cultura, alegando que “a honra e a dignidade de milhões de católicos foram vilipendiadas”. Para manter o especial no ar, a Netflix, que exibiu a edição do ano passado, recorreu ao Supremo Tribunal Federal . Antes, a antiga sede do Porta dos Fundos, no Humaitá, sofreu um atentado . Pelo menos um dos autores foi identificado . Mas a investigação e os embates na Justiça seguem. A sede da produtora já não funciona lá — o grupo comprou novas instalações, no Flamengo, que ainda estão em obras. Por tudo isso, Porchat acredita que o especial ganhou outro vulto:

— Agora, trata-se da luta pela democracia e da defesa da liberdade de expressão. Não seremos intimidados. Viramos notícia no mundo inteiro. Não temos medo de censura. Nós não atentamos contra a Constituição. Atuamos para defender o sagrado do humor. O programa foi feito para debater assuntos delicados. Está faltando conversa na sociedade. Essa é nossa intenção.

Fabio Porchat: Com religião não se brinca

Na sequência vista pelo GLOBO, Thati Lopes/Maria Madalena falava seu texto, sozinha, num esforço para evitar as aglomerações. Porchat acompanhava tudo ao lado do diretor, Rodrigo Van Der Put, que também esteve à frente do programa do ano passado. O especial deste ano terá a linguagem de um falso documentário, e a ação transcorre entre o julgamento de Cristo e a Ressurreição.

Além do elenco do Porta, muitos atores e personalidades fazem participações. Emicida, por exemplo, interpretará Simão; a cineasta Petra Costa (cujo filme “Democracia em vertigem”, indicado ao Oscar de documentário neste ano , inspirou o título) será ela própria; Clarice Falcão narra tudo, como fez Petra em seu longa (o que provocou críticas a sua voz); Marcos Palmeira viverá um manifestante, e Renato Góes, Barrabás.

Thati Lopes vive Maria Madalena no especial que estreia dia 10 no canal do Porta dos Fundos no YouTube Foto: Divulgação
Thati Lopes vive Maria Madalena no especial que estreia dia 10 no canal do Porta dos Fundos no YouTube Foto: Divulgação

Porchat diz esperar que “as pessoas se divirtam”.

— Não escrevo para gerar polêmica. Espero levantar conversas. Algumas pessoas que reclamaram do programa do ano passado me perguntam: você gostaria que fizessem piada com a sua mãe? Eu digo que não. Mas uma coisa é não gostar, outra é não poder. A comédia pode brincar. Já retratamos Maomé como um terrorista gay. Eu sou ateu e já sacaneei ateu também. Não estamos batendo em Cristo, mas em gente poderosa. O poder está na mão de bancadas evangélicas. Não queremos o humor que propaga o preconceito. Nem humilhar ou atacar quem não tem força para se defender. Atacamos gente poderosa.

'Cancelamento' por episódio machista

Essa diretriz foi questionada nos últimos dias. O grupo recebeu várias críticas e foi “cancelado” nas redes sociais após postar um esquete estrelado pela personagem Yollanda Ramos, representação de uma idosa reacionária, mas sexualmente muito livre. No vídeo “Yollanda vereadora”, a personagem interpretada pelo humorista Joel Vieira comemorava a vitória nas eleições “por vazar nudes”. Considerado machista, o conteúdo foi visto por muitos como uma referência à vereadora mais votada de Curitiba, Indiara Barbosa, do Partido Novo. O Porta dos Fundos retirou o filme do ar e pediu desculpas aos seguidores . O CEO da produtora, Christian Rôças, admite o erro. Mas diz que a personagem é ficcional:

— O vídeo realmente não condiz com aquilo em que o Porta acredita, erramos. Por isso, tiramos dos nossos canais. Não foi uma paródia com uma pessoa real, a Dona Yollanda é uma personagem que existe há nove anos. Ainda assim, gostaríamos de pedir desculpas. Acreditamos que o Brasil precisa de mais mulheres em cargos públicos, isso sim faz parte dos nossos valores. Vamos continuar errando e aprendendo, mas sinto que estamos muito conectados com nossa audiência. Todos têm haters , e precisamos saber separar o que é discurso de ódio de uma resposta real, construtiva e bem intencionada.

Gregório Duvivier é Jesus, e Fabio Porchat, seu namorado, em 'A primeira tentação de Cristo', que estreou em 2019 e sofreu ataques e censura Foto: Divulgação
Gregório Duvivier é Jesus, e Fabio Porchat, seu namorado, em 'A primeira tentação de Cristo', que estreou em 2019 e sofreu ataques e censura Foto: Divulgação

Nos últimos anos, o Porta dos Fundos lançou seus especiais na Netflix, inclusive “A Santa Ceia”, que venceu o Emmy Internacional de 2018 na categoria comédia. Agora, o grupo preferiu suas próprias plataformas. A Netflix não confirma se a decisão foi motivada por temor de mais polêmica. De qualquer maneira, só no seu canal do YouTube, o grupo tem 17 milhões de inscritos, o que justificaria a transferência.

Apóstolos Zero Um, Zero Dois, Zero Três

— Comecei a planejar o especial deste ano assim que o outro foi exibido, em dezembro. Vasculhei o Antigo Testamento, pensei em tirar algo dali. Mas aí veio essa ideia. Documentário está na moda, né? — comenta Porchat, rindo. — Serão 25 depoimentos de personagens variados. Entre eles, do próprio Jesus. Tentei usar todas as linguagens mais frequentes nesse tipo de filme, de câmera escondida a depoimentos “tradicionais”. A gente vai ouvir frases banais que ressoam nas ruas hoje, ditas pelos “cidadão de bem”, como: “Com religião não se brinca”. Há em tudo uma forte conotação política.

Perguntado se o público reconhecerá na ficção figuras da vida real, Porchat diz que “tomou cuidado para não existir paralelo direto com a realidade”. Mas será mesmo? Pelo menos os paralelos indiretos estarão lá:

— Entre os personagens estarão o Apóstolo Zero Um, o Zero Dois e o Zero Três. E um Decorativo.

Fora isso, Maria Madalena, por exemplo, conversará com a câmera: “Quantas vezes eu não avisei: Jesus, tem que ter distanciamento social. Para de beijar o pé dessa gente doente! Desse jeito, você vai pegar uma ziquizira”. Ela seguirá, se referindo a outras figuras dos tempos bíblicos, como José de Arimateia (“Ele tá me devendo uma grana”); e também a outras, contemporâneas, como os Guardiões do Crivella (“Cadê os guardiões, foram almoçar?”),