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Cultura

Coronavírus: Baco Exu do Blues faz retrato da epidemia no Brasil num disco gravado em três dias

Racismo e desinformação estão entre os temas que o rapper baiano elenca nas nove faixas de 'Não tem bacanal na quarentena', lançado na terça-feira
O rapper baiano baco Exu do Blues Foto: Filipe Marques / Divulgação
O rapper baiano baco Exu do Blues Foto: Filipe Marques / Divulgação

RIO — Tudo se encaminhava bem para que o rapper baiano Baco Exu do Blues gravasse e lançasse este ano o seu terceiro álbum, o aguardado “Bacanal”. Mas aí veio o novo coronavírus, o Brasil e o mundo ficaram de cabeça para baixo e o artista acabou tendo que se isolar em São Paulo.

Nos primeiros dias da quarentena, uma explosão de sentimentos bagunçou a sua vida, e Baco resolveu trazer de Salvador o seu engenheiro de som, Dactes, que montou um estúdio para ele. Em três dias, o rapper tinha feito “Não tem bacanal na quarentena” , um EP (como ele prefere chamar, embora seja na prática um álbum) com nove faixas que ele lançou anteontem nas plataformas de streaming.

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— Não foi bem uma decisão lançar esse EP, foi mais uma necessidade de trabalhar durante a quarentena — conta Baco, por telefone. — Antes da pandemia eu tinha machucado o ombro e não pude trabalhar. Melhorei dele, veio a quarentena e eu fiquei doido por não estar fazendo nada. Era desespero, medo, receio.

Um urso vestindo máscara de proteção, numa pose que remete à do bebê na capa de “Ready to die”, álbum de estreia do rapper americano Notorious B.I.G. (1972-1997), foi a imagem escolhida para embalar “Não tem bacanal na quarentena”.

É um “retrato desse momento difícil”, que se espalha por faixas como “Jovem preto rico”, “Preso em casa cheio de tesão”, “O sol mais quente” e “Amo Cardi B e odeio Bozo” — que tem o verso “Cardi B fez mais do que o presidente” e um sample da célebre MC americana gritando “coronavírus!” em sua campanha para que as pessoas lavem corretamente as mãos.

— Esse disco é uma parada para entreter as pessoas, para elas terem o que falar, bem ou mal — diz Baco, que na faixa de encerramento do EP, reuniu depoimentos em áudio de moradores de diferentes comunidades, falando sobre como estão lidando com a pandemia. — Cada favela é um mundo, as coisas são muito diferentes. Tem uma galera que está entendendo e outra que está confusa, que acredita quando o presidente diz que o coronavírus é besteira.

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Várias são as frases fortes nos raps de “Não tem bacanal na quarentena”. Na romântica “Preso em casa cheio de tesão”, Baco fuzila: “Eu botaria um filho nosso nesse mundo / se pretos não sofressem tanto”. Em “O sol mais quente”, ele recorre à analogia: “Coronavírus me lembra escravidão / brancos de fora vindo e fudendo com tudo”.

Já em “Tropa do Babu”, ele expõe sua indignação com o tratamento que o ator Babu Santana vem recebendo no confinamento do programa “Big Brother Brasil” , e com a reação do público a isso nas redes sociais.

— Por que não expulsam as pessoas por racismo? E por que tem gente que acha isso normal? — pergunta (e provoca) ele.

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A única letra que Baco não escreveu nesta fase de isolamento forçado foi a de “Tudo vai dar certo”, faixa na qual projeta sua esperança pós-quarentena:

— A gente vai voltar para a rua com esse novo pensamento, a gente está destilando tanto ódio agora que quando tudo acabar as coisas vão estar mais leves. A internet está muito irritada com o quanto existe de descaso da classe empresarial com as vidas de todos, mas acho que no futuro a raiva caminhará para algo mais positivo. Tudo vai dar certo, é nisso que eu quero acreditar.

Crítica

Rapper se precipita e lança coleção de exageros e clichês

Por Luccas Oliveira

Na entrevista acima, Baco Exu de Blues dá de ombros ao dizer que “esse disco é uma parada para entreter as pessoas, para elas terem o que falar, bem ou mal”. Após ouvir “Não tem bacanal na quarentena”, uma série de reflexões pululam a partir dessa explicação. É importante lembrar, por exemplo, que durante o período sem shows, artistas (principalmente os independentes) precisam, mais do que nunca, dos royalties do streaming. E que os fãs estão ansiosos por novos conteúdos de seus criadores preferidos — enquanto muitos deles optam por adiar lançamentos. Do ponto de vista comercial, podemos carimbar o EP de Baco, então, como uma troca justa na base da oferta e da demanda.

Pelo lado artístico, porém, “Não tem bacanal na quarentena” apresenta-se como uma coleção de canções precipitadas, recheadas de lugares comuns, clichês, exageros poéticos (por assim dizer) e versos sem sentido.

Detalhe da capa do álbum "Não tem bacanal na quarentena", de Baco Exu do Blues Foto: Reprodução
Detalhe da capa do álbum "Não tem bacanal na quarentena", de Baco Exu do Blues Foto: Reprodução

O melhor exemplo é a faixa “Amo Cardi B e odeio Bozo”. Nela, Baco diz que estava “Pensando em engravidar Deus/ Pra ver se ele cria um mundo mais igualitário” e encerra uma das estrofes com “O papa é pop/ Quarentena é pop/ Cardi B fez mais que o presidente/ Porra, amo o hip hop” e segue com uma espécie de autocrítica: “É, você não ouviu errado, não, eu falei isso mesmo”. Não há um mínimo de narrativa na letra que se anunciava política pelo título, mas mais parece criada por um gerador automático de clichês e referências — Cebolinha, Caravaggio, Wolfgang (Mozart) e Stradivarius também são citados aleatoriamente, assim como comentários astrológicos. Tudo isso em apenas três minutos.

Num trabalho realizado em três dias, Baco jogou num liquidificador as características que o alçaram, a partir de “Esu” e “Bluesman”, seu trabalho ao plano central do hip-hop brasileiro — a verborragia, o uso de referências pop e clássicas, a ligação entre sagrado e profano (em “Humanos não matam deuses”), as narrativas sexuais (“Ela é gostosa pra caralho”, “Preso em casa cheio de tesão”, “Tudo vai dar certo”). Parece que faltaram filtro e tempo para avaliar, mexer e aparar arestas. Um trabalho criado pelo calor do momento, mas descartável do ponto de vista de construção de repertório (não há qualquer hit em potencial, como foram “Flamingo”, “Te amo disgraça”, “Me desculpa Jay-Z”) e de evolução artística.

Para não dizer que não há acertos, Baco mostra em alguns versos — de faixas como “Jovem preto rico”, “Tropa do Babu” e “Dedo no cu e gritaria” — que segue afiado ao atacar de voadora as desigualdades das estruturas sociais e raciais de nossa sociedade. E do ponto de visto da produção, o EP apresenta beats, samples e melodias (como o sax de “Tudo vai dar certo”) elegantes, mas que acabam ofuscados.

Cotação: ruim.