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Cultura

Cria da Escola Darcy Ribeiro disputa prêmio em Roterdã

Com seu primeiro longa-metragem, ‘Desterro’, Maria Clara Escobar compete pelo troféu Tiger, dedicado a novos talentos
A cineasta Maria Clara Escobar Foto: Divulgação
A cineasta Maria Clara Escobar Foto: Divulgação

Se estivesse no Brasil agora, Maria Clara Escobar certamente engrossaria as manifestações contra o possível despejo da Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Ex-aluna da primeira turma do curso de roteiro da instituição, a cineasta de 31 anos se preparava para viajar para a Holanda, onde exibirá “Desterro” no 49º Festival de Roterdã, quando surgiu a notícia de que os Correios pediram de volta o prédio no Centro do Rio cedido à instituição há 20 anos. O primeiro longa-metragem de ficção de Maria Clara disputa o troféu Tiger, mais importante prêmio do festival dedicado à descoberta de talentos.

— A Darcy foi muito importante para a minha formação. Eu tinha 15 anos quando entrei, e foi uma experiência tão apaixonante que resolvi abandonar o ensino médio e dedicar-me inteiramente ao cinema — diz a cineasta. — Na minha turma tinha de dona de casa a cineclubista da Baixada Fluminense. Era um espaço que reunia pessoas de diversas origens e aspirações, que se sentiam confortáveis ali.

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Maria Clara é filha do filósofo e dramaturgo Carlos Henrique Escobar, tema de seu primeiro filme, o documentário “Os dias com ele”, vencedor da 16º Mostra de Tiradentes. Já “Desterro” é herdeiro dessa convivência na Escola, que lhe abriu um mundo de possibilidades.

O filme acompanha os últimos momentos de uma união desgastada: Laura (Carla Kinzo) e Israel (Otto Jr.) habitam a mesma casa confortável, criam o filho de cinco anos, mas parecem ter perdido o interesse um pelo outro há muito tempo — até que ela desaparece e, tempos depois, é encontrada morta na Argentina.

— O filme surgiu da ideia do desterro, o exílio voluntário, e fui entendendo que há possibilidades que acentuam isso, como a tragédia da morte e o sentimento de não pertencer a lugar algum — aponta a diretora, para quem essa estagnação existencial está ligada a um sentimento de classe. — Israel produz peças, Laura ganha a vida escrevendo, e eles vão levando uma vida sem grandes desafios. Fazem parte de uma classe média que evita confrontos, que não faz concessões em nome da manutenção de seu lugar na sociedade. Porque o perigo é perder os benefícios conquistados, ser rebaixado de status.

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Em seu último terço, “Desterro” refaz a jornada de Laura em direção ao país vizinho, a bordo de um ônibus. Ao longo do percurso, ela trava contato com outras passageiras que, em determinados momentos, falam sobre suas experiências de vida, diretamente para a câmera, em curtos monólogos que misturam realidade e ficção.

— A ideia dos depoimentos surgiu durante o processo. Como tenho uma relação muito profunda com os atores com quem trabalho, de trocar referências e falar de sentimentos, pensei em usar o que conversava com eles e criar uma espécie de pequeno documentário dentro dessa ficção. Fiz provocações, pedia para que elas escrevessem coisas sobre determinados temas que vinham à tona, a partir de experiências pessoais — explica Maria Clara.

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O próximo filme da diretora também tem uma mulher em seu centro. Chama-se “Explode São Paulo, Gil” e é inspirado na história de uma ex-faxineira de Maria Clara, que tinha o sonho de se tornar cantora. O projeto, já parcialmente rodado, tem como protagonista a Gil real, incorporando detalhes de sua vida privada, em experiência que borra as barreiras entre o documentário e a ficção.

— A gente está fazendo o filme para que a Gil se torne uma cantora de verdade — diz a diretora, radicada em São Paulo há 12 anos. — Costumo dizer que ela deveria explodir São Paulo, porque acho que o problema da cidade é aquela desordem de arranha-céus. Mas a Gil diz que não, que a cidade lhe dá oportunidades. O filme é contido nesse conflito de impressões sobre os lugares, que ajudam ou não a sermos o que gostaríamos. E também de como o cinema pode realizar um desejo como o dela, uma vez que Gil diz ser cantora, e ninguém pode dizer que não. Pelo menos dentro do filme.