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Cultura

Darth Vírus, a hora dos pequenos heróis: literatura explica desafios da pandemia colocando crianças como protagonistas

Autores infantojuvenis defendem que é preciso ser franco ao tratar de temas difíceis e que coronavírus deixará campo fértil tanto para livros educacionais quanto para literatura em geral
Vírus malvadão, o vilão do momento na HQ de Daniel Cavalcanti Campos Foto: Reprodução
Vírus malvadão, o vilão do momento na HQ de Daniel Cavalcanti Campos Foto: Reprodução

Na nova aventura da Turma do Pererê, que Ziraldo vai lançar em breve, a missão da trupe será combater o coronavírus. Se na vida real está difícil entender como chegaremos a um final feliz nessa história, nos quadrinhos o cartunista dá o spoiler e garante o otimismo.

— Toda criança acredita que pode vencer o coronavírus. E vence, né? — brinca. — É intrigante para a criança porque ela fica pensando: se tivesse na minha mão como é que eu iria acabar com ele? O vírus ainda é uma coisa tão misteriosa que dá para a gente inventar muitas histórias boas sobre ele.

Livros, histórias e desenhos têm sido aliados para ajudar crianças e adolescentes a entenderem esse momento difícil. Diversos projetos literários infantojuvenis ensinam métodos de prevenção e mostram aos mais jovens caminhos para lidar com sentimentos ainda desconhecidos para muitos deles, como o tédio da quarentena ou a saudade dos parentes que ficaram isolados. A situação é tão séria que até o Cascão começou a lavar as mãos e tomar banho. O personagem de Mauricio de Sousa é o astro de uma campanha recente para prevenção ao coronavírus, que teve apoio da Unicef.

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A Covid-19 é um vilão digno de nota para autores infantojuvenis. E muitos deles nem precisam dar nome aos bois, de tão envolvida com o assunto e bem informada que está a criançada. O escritor e ilustrador Daniel Cavalcanti Campos em nenhum momento usou os termos Covid-19 ou coronavírus em seu livro “O vírus malvadão e as crianças poderosas”, disponível para download gratuito na internet. Na obra, três crianças muito espertas salvam o mundo de uma ameaça que, vamos combinar, todos sabemos qual é.

— Não é difícil passar a mensagem para as crianças porque elas estão realmente vivenciando o momento, participando de tudo — diz o autor — Mas é claro que a escolha por um formato colorido, com super-heróis, é um facilitador.

Campos conta que resolveu escrever o livro porque queria explicar ao próprio filho, de oito anos, o que estava acontecendo. Uma angústia relatada a ele por outros pais e mães que não sabiam como distrair as crianças confinadas.

— Para o meu filho o isolamento social não fazia muito sentido — conta o autor. — Ao mesmo tempo, não dava para dizer que a razão é que lá fora existe um vírus terrível. Isso é de certa forma colocar medo na criança.

Luciana Sandroni é outra escritora de obras infantojuvenis que pensa em registrar em livro o atual momento vivido pelo mundo e particularmente pelo Brasil. Ela é autora de “Ludi na Revolta da Vacina”, lançado em 1999 (pela Salamandra) e até hoje adotado em escolas. Nele, a menina Ludi, inspirada na espevitada Emília, boneca falante e sem papas na língua criada por Monteiro Lobato, viaja no tempo e leva ao jovem leitor a história da crise gerada em 1904 no país, e principalmente no Rio de Janeiro, então capital federal, com a campanha pela vacinação contra a peste bubônica, varíola e febre amarela implementada pelo médico sanitarista Oswaldo Cruz.

— Quando fiz a pesquisa para escrever “Ludi na Revolta da Vacina” me dei conta da importância do Oswaldo Cruz, do papel crucial dele de estabelecer uma política de saúde pública, uma vez que a vacina já existia. — conta Sandroni. — Hoje, ao contrário, ainda não temos uma vacina e não vemos uma estratégia, um plano no país. No meio dessa crise sinto realmente vontade de escrever uma nova aventura: “Ludi na pandemia”. Aproveitaria para atender a um desejo das crianças e a personagem iria para o futuro para encontrar os cientistas e a vacina e trazê-la para o nosso tempo.

Ilustrador acostumado com o reino da fantasia de Grufallo, monstro que se assusta com animais, o alemão Axel Scheffler se viu às voltas com a realidade quando foi convocado para preparar, em tempo recorde, um livro sobre a pandemia. “Coronavirus: a book for chidren” (Um livro para crianças) foi escrito, ilustrado e editado em uma semana. O artista diz que sua ideia foi levar informação a crianças com idades entre 5 e 9 anos. Deu certo. Traduzido em 45 países (mas ainda não no Brasil), ele já foi baixado mais de um milhão de vezes.

Diretora do Centro de Ensino pelos Livros Infantis e professora emérita da Universidade de Chicago, Junko Yokota tem notado uma série de livros tratando sobre assunto em países como a China e o Reino Unido, mas ainda acha que é cedo para definir se há uma tendência de abordagem para o assunto. Para não assustar (ou deprimir) as crianças, ela defende uma literatura que não perca de vista uma perspectiva de futuro.

— É a mesma coisa com nós, adultos — observa. — Podemos assistir obsessivamente às mensagens do dia do juízo final na televisão e nos tornarmos paranoicos. Ou podemos estar atentos, mas não obsessivos, e manter uma perspectiva sobre o mundo, ao mesmo tempo em que observamos como é importante prestar atenção.

Pandemia deixará campo fértil para literatura

Autores infantojuvenis estão acostumados a tratar abertamente de temas difíceis, às vezes até assustadores para muito além do bicho-papão ou de monstros escondidos debaixo da cama — incluindo outras doenças como zika, HIV e dengue. Entre os escritores, há um consenso de que não se deve esconder informações negativas dos pequenos. Franqueza é sempre o melhor caminho, pois eles percebem quando estão sendo enganados.

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— As crianças são espertas, conhecem o que está a volta delas e sabem quando estamos tentando camuflar a realidade — diz o editor Miguel Correia, da portuguesa Ideias com História. — O mais importante é que elas encarem a mensagem como verdadeira.

Recentemente, a editora lusitana lançou o livro “Minha avó tem coronavírus”. Produzido por vários autores em parceria com o sistema de saúde público de Portugal, a obra está disponível para download gratuito no site da Ideias com História e já foi baixado mais de 420 mil vezes em Portugal e 230 mil vezes no Brasil. O livro mostra um garotinho que precisa lidar com a angústia de ter um parente infectado. Apesar da gravidade da premissa, a obra nunca cai no pessimismo.

— O livro transmite uma mensagem de esperança, de que é possível vencer o vírus e de que vamos vencê-lo juntos — diz Correia. — A ideia é que, se todos nós cumprirmos aquilo que devemos fazer, o mundo vai ficar melhor.

Para além das questões pedagógicas concretas, como orientações de higiene, a pandemia deixará um campo amplo para a literatura trabalhar, prevê Mariana Elia, autora de “Uma batalha mundial: todos contra o coronavírus” (Estante de Livros) e editora de livros infantojuvenis da Nova Fronteira.

— Vai haver muitos livros que tratarão de questões como a perda, a saudade de um familiar ou o medo do contágio, coisas que as crianças ainda estão tentando entender e que ainda não conseguem nomear ou descrever — avalia a editora . — Acho que nessa parte a literatura vai entrar com um papel de trazer a informação de uma outra forma, que não seja tão bruta.