Cultura Festival do Rio

‘Deixa na régua’ põe em cena os mestres do corte de cabelo da periferia

Relação de barbeiros com clientes é explorada em filme de Emílio Domingos

Ed, em seu salão: os barbeiros do filme trabalham duro nos cortes artísticos e atuam também como ouvintes e conselheiros dos seus clientes
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Divulgação/Saulo Nicolai
Ed, em seu salão: os barbeiros do filme trabalham duro nos cortes artísticos e atuam também como ouvintes e conselheiros dos seus clientes Foto: Divulgação/Saulo Nicolai

RIO — Cabelo desarrumado, barba farta, o documentarista Emílio Domingos é o sonho de consumo de muito barbeiro por aí. Mas, em seu novo filme, “Deixa na régua” (que tem sua primeira exibição para o público segunda-feira, no Cinema 1 do CCBB, às 16h, seguida de debate), o diretor de “A batalha do passinho” (documentário sobre a febre dos concursos de dança do funk no Rio, eleito melhor filme na Mostra Novos Rumos do Festival do Rio de 2012) não pôde ceder ao impulso: ele estava ali como observador da rotina de três barbeiros da periferia carioca e da relação que eles cultivam com os seus clientes.

— Quantos convites eu não recebi para cortar o cabelo? E a barba? Eu e minha equipe nos sentimos ETs ali nos salões. Para os clientes, estava claro que eu não era um habitué . Por isso foi importante que os barbeiros explicassem o que estávamos fazendo ali — conta Domingos. — Eles é que mediavam as relações, que dirigiam a galera e que davam esporro quando necessário, quando o pessoal no fundo começava a falar muito. Eles eram os maestros, eles explicavam tudo e tranquilizavam as pessoas. Eu nunca poderia fazer isso, ia acabar com o meu filme!

Rodado entre março e setembro do ano passado, “Deixa na régua” acompanha o mais-entra-do-que-sai de clientes das barbearias de Belo (na Vila da Penha), Ed (no Morro da Caixa d’Água, entre Quintino e Piedade) e Deivão (em Piabetá, Magé) — empreendedores que trabalham duro nos fins de semana para fazer cortes artísticos e que atuam também como ouvintes/conselheiros de seus clientes. A ideia surgiu quando Domingos ainda estava nas filmagens da “Batalha do passinho”.

— Eu estava sempre querendo marcar papo com os garotos do passinho na sexta-feira ou no sábado, mas isso era quase impossível porque eles estavam no salão. E eu nunca entendia, porque eu resolvo essas questões de cabelo e barba em 30 minutos, no máximo — recorda-se Emílio, que foi então conhecer a barbearia do Ed, onde iam os meninos. — Parecia uma fila do INSS, umas 20 pessoas, os moleques sem camisa, o maior calor, e o Ed no esmero, fazendo os cortes.

O diretor diz que começou a fazer “Deixa na régua” por puro interesse estético.

— Mas no salão eu me espantei, mais do que com o número de pessoas, com os papos, em como aquilo ali era uma espécie de plenário, em que todo mundo podia se posicionar sobre tudo, desde as expectativas para o fim de semana até as questões mais amplas, como violência e relações familiares — relata ele, que, ao fim de tudo, se viu com “um filme sobre amizade e sociabilidade”. — As pessoas que não se conhecem comungam de vários assuntos, por mais que tenham visões opostas. Se há uma agressividade nas redes sociais hoje, na barbearia o clima é amistoso, as pessoas se escutam.

Ao mesmo tempo, segundo Domingos, “Deixa na régua” é também um filme sobre uma nova juventude da periferia do Rio, preocupada em afirmar a sua individualidade diante do mundo. E muito vaidosa.

— Os garotos não têm o menor problema em falar que pintam a unha, que fazem a sobrancelha, isso é natural. Eles representam um homem mais feminino, mais andrógino — conta ele, que foi muitas vezes aos salões antes de filmar, para fazer pesquisa. — Ainda assim, nos primeiros dias de filmagem a coisa não rolava, as pessoas sempre achavam estranha a presença de uma equipe. Com o tempo, você observa melhor, acha novos ângulos, aprende a filmar no ambiente.

“Deixa na régua” é a segunda parte da “Trilogia do corpo”, a ser completada por Domingos — um filho de porteiro da Tijuca que estudou em escolas municipais, cursou Ciências Sociais na UFRJ e foi trabalhar com documentários. Seu próximo filme será “Favela é moda”, sobre as agências de modelo nos morros cariocas.