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Cultura

Deize Tigrona: 'O funk era uma coisa só de favela, hoje ele faz girar o capital, não vai acabar'

Pioneira entre as mulheres no estilo, a MC de letras picantes enfrentou depressão, trabalhou como gari e agora volta à cena com a música 'Vagabundo'
A MC carioca de funk MC Deize Tigrona Foto: Guito Moreto / Agência O Globo
A MC carioca de funk MC Deize Tigrona Foto: Guito Moreto / Agência O Globo

RIO — No começo dos anos 2000, a Cidade de Deus ganhava as manchetes com o estouro do funk “Cerol na mão” , do Bonde do Tigrão . Mas lá havia também uma Tigrona: Deize Maria Gonçalves da Silva, ex-empregada doméstica, que falava sobre sexo de forma tão direta e franca quanto os meninos, em funks como “Injeção” — que foi sampleado pelo então pouco conhecido produtor americano Diplo para o hit “Bucky Done Gun”, da rapper cingalesa M.I.A.

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Participações no Tim Festival de 2005 (engolindo M.I.A. no palco) e no documentário “Sou feia mas tô na moda” (no mesmo ano, ao lado da ascendente Tati Quebra Barraco), além de um sucesso com o grupo português de kuduro Buraka Som Sistema (“Aqui pra vocês”, de 2009) indicavam um futuro brilhante, interrompido pela depressão, que fez Deize abandonar palcos e turnês no fim da década.

Agora, aos 40 anos recém-completados, em paz consigo mesma e licenciada da Comlurb (onde foi trabalhar como gari há cinco anos), Deize Tigrona está de volta com a música “Vagabundo”, produzida pela DJ paulistana Rafaela BadSista. É a primeira de um álbum que ela promete lançar este ano. Pioneira entre as mulheres num estilo que projetou as estrelas femininas do pop Anitta e Ludmilla , a MC retorna com um funk tão picante e explícito quanto antes.

Casada há 24 anos, essa rainha do funk erótico (que em 2019 voltou a excursionar pela Europa) orgulha-se da família, formada com o marido Rafael e os filhos João Rafael (de 11 anos), Jessica (13) e Joice (17).

— Eles são todos inteligentes. Lá em casa eu falo: não vou pagar curso para vocês. Eles estudam na internet. Joice fala inglês e francês fluentemente — conta ela.

Por que falar de sexo no funk ainda é algo que incomoda tanta gente?

Quando eu falo de sexo, é sobre o que acontece realmente, sobre o que pode ser bom ou o que pode ser ruim. Sobre as pessoas que incomodam de tal forma que você acha que vai acontecer um estupro, ou sobre aquelas que você vai amar para a vida toda. E quando eu saio de casa para curtir um funk, é para dançar. As pessoas que curtem funk sabem o que estão ouvindo e querem dançar de quatro, como está nas letras dos funks. Para alguns homens, isso é obsceno; para a gente, é arte.

As coisas que você relata em seus funks existem também na vida de um casal?

Algumas sim. Outras são imaginação, o que aconteceu ou o que vai acontecer com alguém. Estou assistindo de novo a “Hilda Furacão” ( que inspirou o primeiro funk que ela compôs, de mesmo título ) porque eu quero entender essa mulher que vai para o prostíbulo aos 17 anos porque foi chamada de puta por um cara com quem ela não queria se casar. Acho que hoje o mundo está mais liberal e é triste saber que existe a possibilidade de essa liberdade acabar.

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Como se deu o seu afastamento da carreira artística em 2009?

Eu parei porque estava me sentindo mal e soube que era depressão. Se eu não parasse, alguém ou alguma coisa ia me parar, o mundo artístico estava me sugando. Em 2009, eu estava com duas músicas estouradas na Europa, tinha uma turnê de seis meses para fazer e simplesmente não fui. A turnê anterior tinha sido estressante. Passei um mês e 15 dias na Europa fazendo shows. Quando eu voltei a minha cabeça estava diferente, parecia que tinha uma fumaça na minha testa, eu não conseguia dormir, estava com medo não sei do quê, mas não sabia que era deprê. A mídia criou uma história de que eu tinha medo de voar e de que eu tinha virado cristã. Realmente, eu fui umas duas vezes na igreja, mas vi que aquilo ali não era pra mim.

O que você fez durante esse tempo de tratamento?

O sangue artístico falou mais alto e eu segui a rotina de composição. Fiz “Prostituto” e “Madame” , músicas que eu gravei, mas não divulguei com shows. Voltei a estudar, porque eu só tinha até a quinta série e, nesse meio tempo, cursei até o primeiro ano. Fiz prova para a Comlurb e quando entrei, em 2014, fui logo trabalhar de gari no Leme. Achei muito pesado, a vassoura era quatro vezes maior que a de casa. E teve uma coisa bem punk no Carnaval. O bloco Mulheres de Chico desfilou no Leme, eu estava varrendo o calçadão e algumas pessoas me olharam e me reconheceram....

E o renascimento artístico, como aconteceu?

Depois de me sufocar, dizendo que eu tinha virado cristã e que não cantava mais, o povo passou a ligar e a perguntar como eu estava. O funk estava tendo repercussão, vieram outras mulheres e a mídia quis saber das antigas. Fiz algumas matérias de TV, consegui a licença na Comlurb e voltei à ativa nos shows.

O que sentiu na volta à Europa depois de dez anos?

Foi uma coisa que eu não esperava, para mim o funk tinha acabado. Mas dessa vez cantei em casas diferentes daquelas onde eu tinha me apresentado. Eu nunca tinha ido a Madri e a Londres, por exemplo. A organizadora do evento de Lisboa, no bar Damas, era uma senhora que estava no show que eu fiz dez anos antes, e que fez questão de me chamar. Ela tinha visto na TV que eu tinha voltado cantar.

Como é ver as mulheres ocupando todos os espaços do funk hoje, e não mais o de dançarinas ou MCs?

Parece a revolução do sutiã! ( risos ). Eu fico lembrando da Blaya, que era dançarina dos Buraka, e que de repente estava cantando e que faz uma música que a Madonna e a Anitta regravam . Mas ainda não vejo mulheres DJs nos bailes de favela, é mais os meninos. Será que não querem que o funk faça essa revolução?

O que acha do sucesso de Anitta e de Ludmilla?

Quando eu gravei com o Diplo, acho que a Anitta ainda não existia. Para mim, ela e Ludmilla são necessárias porque hoje em dia o funk não envolve só a favela, envolve outras coisas. Elas estão num outro patamar, que é o do capital. Hoje em dia os produtores investem no funk, na minha época não existia isso. Eu e a Tati Quebra Barraco fomos totalmente precursoras em insistir nisso. Porque hoje Anitta e Ludmilla podem até cantar pop, mas elas dançam como se fosse funk.

O funk sobrevive sem o baile?

Antes, o funk era uma coisa só de favela, hoje ele faz girar o capital, ele não vai acabar. Da mesma forma que existe hoje uma Anitta, amanhã pode vir outra pessoa que se inspirou no funk para ser artista.

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O que mudou no funk da Cidade de Deus?

Hoje as garotas do baile funk estão procurando muito mais se prevenir, não vejo mais tantas garotas grávidas quanto eu via quando era adolescente. Naquela época teve um lance de que as meninas iam para baile funk sem calcinha. Hoje tem a calcinha que não marca roupa, mas antes não tinha. A comunidade é um barril de cultura, eu penso hoje em fazer um filme mostrando o funk, a cultura e a arte da Cidade de Deus. A gente faz política se organizando e ajudando uns aos outros, buscando cesta básica, roupa, fogão... Fazendo a informação circular, pedindo para não jogar lixo no chão. Sei lá, um tempo atrás eu até quis vir de vereadora, para fazer mais pela cultura e pelas crianças.

O que te fez desistir de entrar na política?

Foi ver a violência, a forma como a gente perdeu a Marielle. E ver que o pessoal está impune, que nada acontece. A ação comunitária é eficiente, sim, mas o estado não dá valor. A gente é tratado como se não tivesse título de eleitor.

E o que você vai fazer em 2020?

Quero lançar mais uma música no Carnaval e depois o álbum. Vamos deixar “Vagabundo” rolar, tem algumas pessoas de 20 anos que ainda estão conhecendo a Deize e entendendo a história do funk. E essa é uma história que continua, não só comigo, mas com as outras mulheres.