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Cultura Carnaval 2020

Milton Cunha: 'Eu gosto é do suor, não nasci para ser socialite'

Às vésperas de mais um carnaval, sambista conhecido pelas frases fortes fala sobre sua trajetória enquanto se prepara para o lançamento de dois livros e o ingresso em mais um pós-doutorado
Aos 57 anos, Milton Cunha chega ao oitavo ano comentando os desfiles do Grupo Especial do Rio Foto: Ana Branco / Agência O Globo
Aos 57 anos, Milton Cunha chega ao oitavo ano comentando os desfiles do Grupo Especial do Rio Foto: Ana Branco / Agência O Globo

RIO — Quem assiste às participações de Milton Cunha no "RJ1", da Globo, ou acompanha suas frases no Instagram e outras redes sociais, tem certeza de que ele é a cara da Cidade do Samba . Mas o ex-carnavalesco, que esteve 20 anos à frente de escolas como Beija-Flor, União da Ilha, Unidos da Tijuca e São Clemente, jura que passou todo esse tempo em barracões estudando para ocupar o outro lado. O que ele queria mesmo era trabalhar na TV.

No próximo fim de semana, fiel ao projeto, Cunha pisa na Sapucaí para seu oitavo ano comentando desfiles das escolas do Grupo Especial do Rio, ao lado de Fátima Bernardes e Alex Escobar. Um enredo difícil de imaginar quando se volta ao começo da história, muito antes dos barracões.

Nascido na Ilha de Marajó, há 57 anos, Milton Cunha saiu de casa aos 16, depois de apanhar muito do pai por ser gay. Foi viver em Belém, estudou psicologia, já que "precisava de um diploma", e, quando não estava em sala de aula, ocupava os palcos do teatro universitário, onde se destacava como ator.

Em 1982, decidiu se mandar para o Rio (“de pau de arara”, ele diz). Aqui, conseguiu registro profissional de ator. Mas acabou trabalhando nos bastidores, como costureiro, passador de roupa e produtor de moda, em produções de Maurício Sherman, Watusi e Chico Recarey, no Scala.

Nascido na Ilha de Marajó, Milton partiu para Belém aos 16 anos: infância conturbada Foto: Ana Branco / Agência O Globo
Nascido na Ilha de Marajó, Milton partiu para Belém aos 16 anos: infância conturbada Foto: Ana Branco / Agência O Globo

— Acabei me apaixonando pela luz dos palcos, pelas escadas e pelas vedetes — relembra ele.

Foi num evento no Scala que sua vida começou a mudar. Ao acompanhar a amiga Fabiola Oliveira num concurso de modelos, conheceu o patrono da Beija-Flor, Anísio Abraão David. O contraventor engatou num relacionamento com Fabiola (já estão juntos há 32 anos, aliás), e Milton se aproximou do mundo do samba.

Pós-doutorado na EBA

Um dia, anos mais tarde, foi convidado a participar de um concurso de enredos na escola. Inexperiente no meio, argumentou que era um homem do teatro, da ópera, do cinema. Como réplica, ouviu de Anísio: “Então, qual balé você transformaria em desfile?”.

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— E assim nasceu o enredo sobre a Margaret Mee (1994), artista botânica londrina que veio para o Brasil e foi morar com os índios na Amazônia. Terminamos no quinto lugar — conta o ex-carnavalesco, que esteve à frente da Beija-Flor em outros três anos.

Milton Cunha tem na estante três prêmios Estandarte de Ouro na categoria enredo, todos com temas considerados eruditos aos olhos do grande público: a trajetória do fotógrafo francês Pierre Verger (Ilha, 1998), a lusofonia ao redor do mundo (Unidos da Tijuca, 2002) e os povos agudás, descendentes de negros escravizados no Brasil que retornaram à África a partir do século XIX (Unidos da Tijuca, 2003).

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O academicismo levado aos desfiles se justifica. Mestre, doutor e pós-doutor pela Escola de Belas Artes (EBA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Milton não abandonou o papel de aluno enquanto apresentava suas histórias na Sapucaí.

— O estudo sempre me seduziu muito, os decanos me encantam. Vou para o meu segundo pós-doutorado, sobre o Boi de Parintins — conta ele, que irá lançar neste ano o livro “Semiologia da escola de samba” (Senac SP), analisando a semântica e o uso dos símbolos da festa, como as plumas, as cabeças das fantasias e as maquiagens.

Milton rodeado pelas baianas da Mangueira durante gravação do "RJ1" na Cidade do Samba Foto: Ana Branco / Agência O Globo
Milton rodeado pelas baianas da Mangueira durante gravação do "RJ1" na Cidade do Samba Foto: Ana Branco / Agência O Globo

Com as raízes fincadas no espetáculo mais popular do planeta, porém, ele diz que quer seguir perto do povo. Prova disso é o sucesso que faz em redes sociais com mensagens diárias de autoajuda levadas a seus 800 mil seguidores no Instagram. Algumas estarão em outro livro (“Saída para dentro”, da editora Malê), a ser lançado também em 2020.

Há poucos dias, Milton diz que foi parado por um ambulante num sinal de trânsito nos arredores da Cidade do Samba, mas o rapaz deixou os bombons de lado para falar.

— Ele contou que repassa os textinhos que eu gravo no Instagram para todo mundo da família — comenta Milton. — Nunca exerci a psicologia. Mas o que aprendi no curso eu uso na vida, me ajudando na relação com as pessoas.

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Quanto mais perto do carnaval, mais pessoas entram nessa relação. São dezenas de barracões visitados, bailes promovidos nas quadras das escolas e um tanto de preparo para as transmissões dos desfiles na Globo. Se você gosta de carnaval e se gaba de viver a festa desde muito antes, saiba que a agenda foliona de Milton Cunha começa em outubro, com as primeiras gravações para o RJ1, e só termina... bem, não termina. Em maio ele segue para fora do Brasil, onde apresenta shows de carnaval em cidades como Lausanne, Toronto, Boston e Nova York.

Coberturas e análises

Além dos comentários nos dois dias de Grupo Especial, ele também fará análises das agremiações da Série A. E, na Quarta de Cinzas, acompanha a apuração das notas dadas pelos jurados às escolas de samba, ao lado da jornalista Mariana Gross. Como ele aguenta?

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— Minha dieta é a do tremelique, amado. Não posso perder nada, durmo três horas por noite. Só tomo umas vitaminas, porque de vez em quando a gripe chega forte — conta Milton, dono de um guarda-roupas com mais de 500 ternos e 150 pares de sapatos.

A extravagância não é persona carnavalesca, ele diz. Virou marca do ano todo:

— Não tenho vergonha, não negocio minha felicidade, não tenho medo. E eu gosto é do suor, não nasci para ser socialite.