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Cultura Filmes

Doc mostra por que Antonio Callado se decepcionava ao tentar compreender o país

No filme, a cineasta Emília Silveira entrevista a viúva e amigos do autor de 'Quarup', célebre por se posicionar contra a ditadura, mas que alfinetou também a esquerda festiva
O escritor Antonio Callado, autor de "Quarup", um clássico da literatura brasileira Foto: Reprodução / Divulgação
O escritor Antonio Callado, autor de "Quarup", um clássico da literatura brasileira Foto: Reprodução / Divulgação

RIO — Emilia Silveira , cineasta de documentários como "Setenta" e "Galeria F", é de uma sinceridade incomum para quem divulga um novo filme. A obra é "Callado" , uma cinebiografia com tom de ensaio sobre Antonio Callado (1917-1997). Mas Emilia logo esclarece que "a gente não consegue saber quem foi Callado" assistindo à "Callado".

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É uma conclusão que tem tudo a ver com seu personagem: Callado foi um escritor e jornalista que queria entender o Brasil, frequentemente se desiludia, mas logo retomava sua busca em seus livros. Em suas palavras, numa entrevista a Matinas Suzuki Jr. e Mauricio Stycer, publicada poucos dias antes de sua morte, em 1997, na "Folha de S. Paulo", ele disse que "o Brasil tem sido uma série de falsas expectativas, uma série de decepções".

Era a fala de uma homem que acabara de completar 80 anos e que nunca se contentou com essas decepções. Emilia, que chegou a conviver à distância com Callado quando ela era repórter e ele editorialista do "Jornal do Brasil", foi ela própria tentar compreender um homem que tentava compreender o país, ambos com altas doses de incompreensão.

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— Ele é quem está escondido dentro dos livros, e se liberta na imagem dos leitores — diz a cineasta. — Então não fiz um filme do berço ao túmulo, não fazia sentido para mim. Resolvi passar por cima da obra teatral, das adaptações para o cinema e me concentrei no que parecia ser o mais relevante: os livros e o jornalismo.

Críticas à 'esquerda festiva'

Ana Arruda Callado, viúva do escritor Antonio Callado, no filme "Callado", de Emília Silveira Foto: Reprodução / Divulgação
Ana Arruda Callado, viúva do escritor Antonio Callado, no filme "Callado", de Emília Silveira Foto: Reprodução / Divulgação

Para ajudar nessa descoberta, Emilia entrevistou mais de uma dúzia de antigos amigos e admiradores recentes. Suzuki e Stycer guardaram e disponibilizaram a gravação daquela última entrevista de 1997. O crítico literário Davi Arrigucci Jr., o filósofo Eduardo Jardim e os jornalistas Wilson Figueiredo e Sérgio Augusto falam da obra de Callado e exaltam como ele levou elementos literários para o jornalismo.

Já a principal entrevistada, a viúva Ana Arruda Callado , jornalista e escritora, é quem traz as melhores histórias, como na época do lançamento de "Bar Don Juan", romance de 1971 em que o escritor, célebre por se posicionar contra a ditadura, expunha um grupo de revolucionários que mais bebiam para esbravejar contra o regime do que agiam.

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"Pessoal ficou enfurecido. 'Callado é um traidor, como fala em esquerda festiva?' Aí comentei com o (publicitário) Armando Strozenberg que era uma injustiça o que estão fazendo. E o Armando disse para eu ligar para ele, porque ele estava sendo massacrado. Liguei, marcamos um jantar e não nos largamos mais", conta Ana Arruda.

Aguardando lançamento desde 2017

Além de "Bar Don Juan", o filme se aprofunda em "Reflexos do baile" (1976) e obviamente "Quarup" (1967), este considerado sua obra-prima e um clássico da literatura — que será relançado pela José Olympio em fevereiro, com prefácios dos escritores indígenas Daniel Munduruku e Márcia Kambeba .

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"Callado" foi lançado em festivais em 2017, mas chega apenas agora aos cinemas pelas conhecidas dificuldades do cinema brasileiro — estará em fevereiro no Now e daqui a alguns meses será exibido nas grades de Canal Brasil e Globonews. É uma demora que fez com que dois entrevistados não possam estar presentes para a estreia: os jornalistas Carlos Heitor Cony e Fuad Atala , mortos em 2018 e 2019, respectivamente.

— Parece incrível, mas o filme se tornou ainda mais atual hoje do que era em 2017. Pelo nosso espanto de como permitimos que o Brasil chegasse onde chegou. Esse espanto não existia em 2017. A gente não sabia que poderia piorar — diz Emilia.