Cultura

Em carta inédita para Alceu Amoroso Lima, João Cabral elogia 'lúcida compreensão do sentido de um poema'

Registro foi encontrado por pesquisador em arquivo do crítico e escritor Alceu Amoroso Lima, em Petrópolis
O escritor João Cabral de Melo Neto Foto: Flavia Ribeiro / Agência O Globo
O escritor João Cabral de Melo Neto Foto: Flavia Ribeiro / Agência O Globo

O arquivo de Alceu Amoroso Lima, no Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade (CAALL) de Petrópolis, é rico em documentação e memória da nossa literatura. Nele, encontro esta carta inédita de João Cabral de Melo Neto com reconhecimento ao crítico por conta de interpretação deste em relação à poesia cabralina. Trata-se de um pequeno texto que Alceu escreveu, em 1956, no encarte do LP Murilo Mendes & João Cabral de Melo Neto (“Coleção Poesia”, Festa Discos, V.10), do qual retiro esta passagem:

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"O que encontramos na poesia de Murilo Mendes como na de João Cabral é a mesma sobriedade incisiva, a mesma graça hieroglífica, a mesma concisão cristalina, um senso parecido de 'humor', a mesma predominância dos metais sobre as cordas, em oposição ao que encontramos na estilística, mesmo dos mais modernos 'românticos'. Em ambos a mesma dureza penetrante, que João Cabral exprime tão bem no seu último e admirável poema 'Uma faca só lâmina', agreste e inesquecível como uma página de Graciliano Ramos e certos poemas da 'Poesia em Pânico' de Murilo. Mas entre Murilo e João Cabral há esta outra diferença: naquele a constante presença de Deus, na aridez dos desertos humanos: neste a 'ausência' que nem a 'bola', nem o 'relógio', nem a 'faca', os três símbolos de sua poética máscula, ascética e inflexível conseguem substituir."

O crítico e escritor Alceu Amoroso Lima que adotou o pseudônimo de Tristão de Ataíde. Foto: Foto Arquivo / Agência O Globo
O crítico e escritor Alceu Amoroso Lima que adotou o pseudônimo de Tristão de Ataíde. Foto: Foto Arquivo / Agência O Globo

Em outros textos críticos, Alceu sempre afirma esta dimensão cortante e seca da poesia de João Cabral , chegando a considerá-lo um “clássico dentro do nosso modernismo”. Certamente, esta autópsia crítica encantou o poeta, levando-o a dizer, na sua carta, que Alceu fez uma análise “precisa”, “ uma lúcida compreensão do que pode ser o sentido de um poema”.

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Em sentido contrário, Cabral lembra do ceticismo de Mário de Andrade em relação à crítica de Alceu. Escrevendo a Drummond, em 16/10/1925, Mário afirmou: “Estou meio me convencendo que o Tristão não tem nenhuma sensibilidade ou quase nenhuma pra compreender versos. Não compreende nada do conteúdo essencial da poesia”. Tal opinião foi compartilhada com outros poetas da época, bem como foi defendida em alguns dos seus textos críticos. Anos depois, em 17/6/1943, Mário se reconciliou com Alceu, escrevendo-lhe: “Meu caro Tristão, tem um motivo principal esta resposta, aliás. É me penitenciar duma frase que perdeu o sentido. É quando afirmei que V., seguindo a tradição de crítica nacional, sofria de incompreensão de poesia”.

Aproximando-se do centenário da Semana de 22, cartas como esta de João Cabral, e todas as relações que uma correspondência pode suscitar, ajudam a compreender a complexidade do nosso modernismo literário , abrindo espaço para novas ressignificações.

Leia a carta de João Cabral a Alceu Amoroso Lima na íntegra:

"Sevilla, 13.II.1957

Prezado Dr. Alceu, somente hoje, ao receber os discos que me mandou o Carlos Ribeiro, pude ler a bela apresentação que o Sr. escreveu para ele. Além de bela gostaria de chamá-la justa. Mas esta palavra, aplicada a um texto em que há referências demais elogiosas à qualidade do poeta, poderia se prestar a mal-entendidos. Peço-lhe, assim, que retire de justa a ideia de “de justiça” e deixe a de precisa. E que não a refira aos elogios que faz à qualidade do poeta, mas à maneira como definiu a “qualidade” da poesia do poeta (qualidade no sentido em que os pintores usam a palavra). Minha geração cresceu aceitando, sem exame, uma opinião apressada, não sei se de Mário de Andrade, segundo a qual o Sr. não seria um bom crítico de poesia. Mas esta nota prova o contrário. A maneira como o Sr. abordou a poesia de Murilo e a minha, definindo primeiro a realidade concreta da coisa poema para depois ver que sentido (filosófico, moral, etc) provocou, ou determinou aquela coisa-poema, que sentido está por detrás dele (não como um original está por detrás de uma tradução mas como uma mão está por detrás de uma caligrafia), essa maneira é a única maneira de abordar a poesia e não sei se o crítico Mário de Andrade foi capaz de exercê-la em algum momento. Permita que lhe diga que sua nota me surpreendeu. Não como obra sua, mas como obra da crítica brasileira em geral, sempre inclinada a parafrasear o poema, a identificar aquilo que chamei sentido do poema como o que o poema diz diretamente. Crítica que quase nunca mostra compreender que um poema é uma obra, é a concretização de uma visão, de um sentido determinado, e não uma tradução, uma explicação ou uma confissão desse sentido.

Me animei a escrever tanto porque estou certo de que o Sr. vai entender esta carta como ela deve ser entendida. Não a vai tomar por uma pretenciosa e impertinente aprovação de uma obra como a sua, mas como o que ela realmente pretende ser: a expressão de meu entusiasmo ao deparar com um texto de autor brasileiro em que há uma lúcida compreensão do que pode ser o sentido de um poema e do que deve ser a missão da crítica de poesia.

Cumprimenta-o, agradecido, seu

João Cabral de Melo Neto"

* Leandro Garcia é professor da UFMG e pesquisador do Museu Imperial