RIO - “A gente está fazendo umas filmagens muito lindas porque a gente está construindo um filme... que eu nem vi, mas eu sei que vai ser lindo”, anunciou o rapper Emicida, do alto do palco do Teatro Municipal de São Paulo, em novembro de 2019. O resto, quase todo mundo conhece: trechos do show serviram de fio condutor para “AmarElo – É tudo pra ontem”, documentário lançado na Netflix um ano depois, em plena pandemia, no qual o rapper entrelaçou a sua própria trajetória às dos negros que vieram para o Brasil escravizados e as de seus descendentes – um povo que, sob chicote, privações e humilhações, construiu um país de grandes riquezas materiais e culturais.
A despeito do impacto do filme dirigido por Fred Ouro Preto, algo ficou faltando: o registro na íntegra do show, da noite histórica em que um artista negro seus companheiros de jornada ocuparam o palco mais nobre da sua cidade.
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A lacuna foi preenchida esta sexta-feira, com o lançamento na Netflix e nas plataformas de streaming de áudio de “AmarElo – Ao vivo”. Tendo como base o repertório do álbum de mesmo título, lançado em outubro de 2019 , o registro põe em perspectiva a maturidade artística do rapper – o maior da geração surgida após os Racionais MCs – seja como pensador, bandleader, MC, melodista ou autor de rimas sofisticadas e cortantes.
Emicida frequentemente ultrapassa o rap, num universo que moldou a partir de discos e livros – e no qual figuras como o compositor baiano Dorival Caymmi e o escritor moçambicano Mia Couto se juntam para iluminar as quebradas violentas e sem oportunidades.
A liberdade, para o rapper, é algo pelo qual se tem que lutar todos os dias. Mas essa luta não exclui a beleza, principalmente a que está no cotidiano, como mostram as canções que abrem o espetáculo: “A ordem natural das coisas”, “Quem tem um amigo (tem tudo)” (com deliciosas falas do sambista Wilson das Neves, parceiro falecido em 2017 ) e “Pequenas alegrias da vida adulta”, todas elas do álbum “AmarElo”.
O clima de positividade possível se estende por “Cananéia, Iguape e Ilha Comprida”, “Baiana”, “Alma gêmea” (balada soul do mote “ser feliz é bem melhor que ser rei”) e “Eu gosto dela”, com Drika Barbosa, canção da louvação do feminino.
![Emicida (à esquerda), Majur e Pabllo Vittar, em 2019, no Teatro Municipal de São Paulo Foto: Jef Delgado / Divulgação](https://ogimg.infoglobo.com.br/in/25112897-e85-137/FT1086A/emicida-majur-pabllo-vittar.jpeg.jpg)
Aos poucos, a atmosfera vai se adensando para o rock “Paisagem”, o soul cinematográfico em “Hoje cedo” e “AmarElo”, faixa com o sample de “Sujeito de sorte” (de Belchior) e a participação de Majur e Pabllo Vittar. Um momento de rara emoção no palco (que, no documentário, serviu de ápice), com uma presença quase física de Belchior e toda a força exercida pelo verso central “permita que eu fale, não as minhas cicatrizes”.
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Abertas as comportas, é difícil segurar a torrente – de tudo que existe no intervalo entre o ódio e o amor – despejada por Emicida em “Eminência parda”, “Pantera Negra”, “Boa esperança” (“o tempero do mar foi lágrima de preto”) e “Ismália”, faixa de “AmarElo” que ocupa posição de centralidade no repertório do espetáculo, com a imagem dos “oitenta tiros” para lembrar que existe uma “pela alva” e uma “pele alvo”.
Diante disso tudo, “Gueto” (dedicada à avó de 80 anos que pela primeira vez pisava no Municipal) e “Principia” (um ajuste de contas com as distorções do cristianismo que até hoje aflige os povos negros) se revelam não só como poderosos números de encerramento, mas como verdadeiras cerimônias de purgação – que só agora, com a nova edição, podem ser apreciadas pelo grande público como se deveria, na forma de um espetáculo equilibrado e devastador.
Cotação: Ótimo