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Cultura

Fim dos Beatles completa 50 anos, lembrando a arte de acabar com uma grande banda

Anúncio da saída de Paul McCartney, manchete do jornal inglês 'Daily Mirror' em 10 de abril de 1970, selou o destino do grupo, que resistiu às propostas de volta
Os Beatles em 1970, ano em que anunciaram o fim da banda Foto: Divulgação
Os Beatles em 1970, ano em que anunciaram o fim da banda Foto: Divulgação

RIO - A manchete do jornal inglês “Daily Mirror” do dia 10 de abril de 1970 dizia: “Paul deixa os Beatles ”. Para os fãs, que já sabiam do afastamento entre os integrantes desde 1968 (o que não os impediu de gravar o “Álbum branco”, “Abbey Road” e “Let it be” no período), aquela era a confirmação: a maior banda de rock de sua época (e de outras épocas) terminara. Mas nada foi dito diretamente: a notícia de que o baixista Paul McCartney resolvera romper o quarteto fabuloso, de 50 anos atrás, foi uma dedução de Don Short, jornalista do “Mirror”, ao ler a entrevista-questionário distribuída à imprensa com as cópias promocionais de “McCartney”, primeiro álbum solo de Paul, que seria lançado no dia 17.

“Seu rompimento com os Beatles é temporário ou permanente, devido a diferenças pessoais ou musicais?”, perguntou Peter Brown, executivo da Apple, gravadora dos Beatles, a quem ele confiou o questionário. “Diferenças pessoais, diferenças comerciais, diferenças musicais, mas acima de tudo, porque eu me divirto melhor com minha família. Se é temporário ou permanente? Realmente não sei”, respondeu o beatle, que via naquele texto um subterfúgio para não enfrentar a imprensa diretamente.

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Ao longo dos anos, a “diferenças” pessoais e musicais citadas na entrevista de Paul viraram um clichê dos comunicados de dissolução das bandas de rock mais populares do seu tempo. Tão clichê quanto a própria dificuldade que essas bandas – diferentemente dos Beatles – tiveram em manter-se separadas diante dos apelos de gravadoras e de empresários por mais um disco ou mais uma turnê (mesmo que fosse uma anunciada como “a de despedida”). Ou seja: o anúncio de Paul há 50 anos foi, de certa forma, o maior dos exemplos da arte perdida de encerrar a carreira de uma lenda do rock.

Naquele abril de 1970, quem mais ficou enfurecido com o anúncio do fim dos Beatles, feito – de propósito ou não – pelo baixista, foi seu parceiro de composição, John Lennon . Alguns meses antes, era Lennon que resolvera deixar o grupo, mas foi convencido a ficar enquanto o último álbum da banda, “Let it be” (gravado em 69, antes de “Abbey Road”, mas só lançado em maio de 70) não saía.

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Paul tinha sido, enfim, o último a movimentar-se para fora do grupo: Em 68, Lennon havia começado a namorar a artista conceitual Yoko Ono , vindo a casar-se com ela no ano seguinte. Até o fim oficial dos Beatles, os dois gravaram discos experimentais juntos, montaram a Plastic Ono Band e o beatle lançou os singles solo “Give Peace a chance”, “Cold turkey” e “Instant karma”. George Harrison já tinha lançado dois álbuns solo, Wonderwall music” e “Electronic sound” e Ringo Starr soltou o seu primeiro, “Sentimental journey”, em 27 de março de 1970 – três semanas antes de “McCartney”.

No último dia de 1970, Paul McCartney pediu na Suprema Corte britânica que dissolvesse os Beatles, iniciando o que seria um processo de quatro anos para finalmente se libertar de quaisquer obrigações legais e complicações restantes. Daí em diante, os quatro ingleses seguiram as suas vidas e carreiras solo (mais bem-sucedida no caso de Paul), sem deixar nunca de alimentar a esperança de uma volta da banda. O sonho durou pouco mais de 10 anos – só até o dia 8 de dezembro de 1980, quando John Lennon foi morto na porta do prédio Dakota, em Nova York, pelo tresloucado fã Mark Chapman.

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Autor do livro “The Beatles 1970 – 1980”, lançado ano passado para contar o que os quatro integrantes do grupo fizeram enquanto suas carreiras solo coexistiram, o pesquisador Ricardo Pugialli lista os fatores que, a seu ver, impediram a tão desejada volta.

– Primeiro, havia todos os problemas legais com o processo movido por Paul e, depois, com a dissolução oficial da “empresa” Beatles e o fim do contrato com a EMI. Aí sim, livres como pássaros, eles colaboravam uns com os outros, mas sempre havia um ou outro problema evitando o encontro dos quatro no estúdio, e o maior deles era a aversão de George trabalhar com Paul – diz. — Ao vivo, não haveria problema para que os Beatles se reencontrassem. Mas eles só topariam se fosse por prazer e não por grana, que foi oferecida em quantidades absurdas. A reclusão de Lennon (entre 1975 e 1980, o beatle se dedicou ao casamento e à criação do filho Sean) só tornou as coisas mais difíceis.

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Ex-baterista dos Titãs, o produtor musical, apresentador de TV e radialista Charles Gavin vê como um fator importante para a não-volta dos Beatles nos anos 1970 o fato de sucesso e dinheiro não terem vindo a faltar a nenhum dos integrantes:

– Nos anos que se seguiram à separação, as carreiras individuais dos Fab Four se estruturam e se consolidaram, seguindo em direções diferentes, em consonância com as necessidades da vida privada de cada um. Mas as tensões e diferenças ideológicas ainda existiam. Certamente, o desejo de estar longe um do outro ainda era maior do que o de estar junto.

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Corta para os dias de hoje, em que a música gravada rende aos artistas uma ínfima fração do que rendia nos anos 1970 e 80, do auge da indústria fonográfica, e o dinheiro tem que ser feito nos palcos (uma verdade da qual nem Paul McCartney e Ringo Starr escapam). Até pouco antes da pandemia de coronavírus, as grandes bandas de rock contemporâneas dos Beatles – Rolling Stones , Who , Beach Boys – seguiam na estrada ou preparavam turnês. E raras eram aquelas lendas do rock que, não tenho perdido nenhum integrante para a morte, insistiam em permanecer extintas (caso dos Smiths , R.E.M , Oasis e olhe lá). Numa realidade paralela de 2020, em que John Lennon e George Harrison (vítima de câncer em 2001) estivessem vivos, como se comportariam os Beatles?

— Acredito que fariam shows juntos, pequenos, médios, acústicos. E o convite ia partir do John — aposta Ricardo Pugialli.

– O único motivo que faria eles voltarem seria o envolvimento em alguma grande causa humanitária, em algum evento filantrópico de grande porte como foi o Live Aid, onde o Queen se reagrupou e se apresentou – acredita, por sua vez, Charles Gavin. – Não é absurdo pressupor que esta pandemia, que torna nosso futuro incerto, é um fator que poderia encorajá-los a se reunirem em algum tipo de ação. É disso que precisamos agora.