Cultura

'Garota, mulher, outras' é coro de vozes que impressiona pela originalidade

Primeiro romance de Bernardine Evaristo publicado no Brasil é composto de versos livres, o que emprega um ritmo particular ao texto
A escritora Bernardine Evaristo, autora de 'Garota, mulher, outras', obra vencedora do Man Booker Prize 2019 Foto: TOLGA AKMEN / AFP
A escritora Bernardine Evaristo, autora de 'Garota, mulher, outras', obra vencedora do Man Booker Prize 2019 Foto: TOLGA AKMEN / AFP

Um coro de doze vozes diferentes reunidas para cantar uma única canção. Esse poderia ser um resumo do romance “Garota, mulher, outras”, de Bernardine Evaristo, que dividiu com “Os testamentos”, de Margaret Atwood, o Booker Prize de 2019.

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Não espanta que as associações musicais se espalhem em muitas das resenhas do livro: o romance, todo composto de versos livres, emprega um ritmo particular ao texto, e Evaristo parece muito atenta à sua sonoridade. Ao ler alguns trechos em voz alta, essa musicalidade fica ainda mais evidente.

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Cada uma das doze personagens ganha um capítulo do livro, nomeado de acordo: na parte I, Amma, Yazz e Dominique; na parte II, Carole, Bummi e LaTisha; na parte III, Shirley, Winsome e Penelope; e, na parte IV, Megan/Morgan, Hattie e Grace. Depois que cada uma protagoniza o seu trecho, temos a parte V, uma reunião chamada de “A festa”. A partir de uma estrutura engenhosa, Evaristo organiza e desorganiza a narrativa, pois as histórias vão se entrecruzando de modo que quem é protagonista num trecho aparece como personagem secundária em outro, com mais ou menos peso.

Capa do livro 'Garota, mulher, outras', de Bernardine Evaristo Foto: Reprodução
Capa do livro 'Garota, mulher, outras', de Bernardine Evaristo Foto: Reprodução

Todas as personagens de Evaristo vivem na Inglaterra e são imigrantes ou descendentes de imigrantes de países da África ou da região caribenha. A mais nova tem menos de 20 anos; a mais velha, mais de 90. Entre elas, onze são mulheres e uma, Megan/Morgan, “vem se identificando como gênero neutro nos últimos seis anos”. Provavelmente, essas passagens ofereceram os maiores desafios de tradução, uma vez que a linguagem acompanha a forma não-binária como a personagem se vê. Mas a tradutora, Camila von Holdefer, fez um trabalho muito bonito e convincente, bastante atenta ao material original e aos debates linguísticos e culturais da atualidade.

Alegria particular

Se o romance de Evaristo até se vale de muitos topos contemporâneos, faz isso com um frescor próprio, com uma energia vivaz. Em nenhum momento, “Garota, mulher, outras” soa uma obra meramente panfletária. Ao contrário, chama atenção pela polifonia e pela rica construção de personagens, repletas de ambiguidades humanas. E, mesmo nas passagens mais pesadas — que não são poucas—, o romance tem uma alegria particular, a alegria que só um projeto tão vigoroso e inteligente pode alcançar.

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Parte dessa alegria pode ser atribuída à inventividade e ao humor sofisticado da autora. Parte talvez seja resultado da tal musicalidade do texto, que embala toda a leitura.

Nas linhas finais, Evaristo escreve: “não tem a ver com sentir alguma coisa ou com palavras ditas/tem a ver com estar/juntas”. Talvez a maior beleza dessa obra-prima seja essa representação de uma certa coletividade interconectada: as personagens estão juntas, emboladas na própria tessitura do texto. São doze vozes diferentes e autônomas, mas também doze vozes que, afinando e desafinando, compõem uma obra única. Única no sentido de una e também no sentido de original.

*Fabiane Secches é psicanalista, crítica literária e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP.

Serviço

“Garota, mulher, outras”

Autora : Bernardine Evaristo. Tradutora : Camila von Holdefer. Editora : Companhia das Letras. Páginas : 495. Cotação: Ótimo