Cultura

Gravadora carioca faz sucesso unindo trap dos EUA com o funk da favela

Criada pouco antes da pandemia, Mainstreet Records está hoje no centro de uma revolução, reunindo nomes como MC Poze do Rodo (“Vida louca”), Bin (“Saturno”) e Borges (“iPhone branco”)
Orochi e Lang, fundadores da Mainstreet. “A proposta é a de você conquistar o mainstream sem perder a sua essência de rua”, diz o rapper, que criou o nome da empresa Foto: Ana Branco / Agência O Globo
Orochi e Lang, fundadores da Mainstreet. “A proposta é a de você conquistar o mainstream sem perder a sua essência de rua”, diz o rapper, que criou o nome da empresa Foto: Ana Branco / Agência O Globo

Casa de artistas de grande sucesso no streaming brasileiro, como Chefin — rapper de 18 anos que figurava esta semana no Top 50 do Spotify com duas faixas, “212” (em quarto lugar) e “Deus é meu guia” (em 47º) —, MC Poze do Rodo (“Vida louca”), Bin (“Saturno”) e Borges (“iPhone branco”), além dos projetos coletivos A Cara do Crime e Assault, a gravadora carioca Mainstreet Records está hoje no centro de uma revolução. Fundada pouco antes da pandemia de Covid-19, ela se tornou um expoente do rap brasileiro ao explorar as possibilidades de diálogo do trap — estilo que dominou nos últimos anos o mercado americano — com o funk das favelas cariocas.

— O trap tinha mais entrada entre uma classe média alta, porque era uma galera que ouvia mais música de fora. Nosso diferencial foi entender que esses talentos que cantavam funk também podiam fazer um trap preto e favelado, com a estética do Rio — explica o empresário Lucas Mendes Lang, o Lang, de 28 anos, que fundou a Mainstreet com o rapper Flávio Cesar de Castro, o Orochi, de 22. — Mostramos que trap não precisava ser só dinheiro e mansão, como o pessoal da gringa faz, mas que ele podia ter uma cara nossa, com favela, funk, baile e as histórias de vida dos moleques.

Novo rap de Gabigol fala do Flamengo: 'Um milhão é pouco porque eu sou camisa 9', diz letra; veja vídeo

Com essa ideia, a gravadora prosperou rápido e, há pouco mais de um ano, se instalou em um amplo imóvel na Estrada da Barra, onde antes funcionava uma boate. Lá, Lang e Orochi encontraram o espaço ideal para montar estúdios, bar, sinuca, terraço, escritórios e uma sala de reuniões clássica, com logotipo da gravadora (que também adorna a entrada do prédio). Tudo para que os artistas se sentissem em casa, 24 horas por dia.

— Aqui só não tem cama! — brinca Orochi, que começou a ser empresariado por Lang há cinco anos e viu nele o parceiro ideal para montar a Mainstreet (nome que, para ele, é uma junção de “mainstream”, o grande mercado, com “street”, rua). — A proposta é a de você conquistar o mainstream sem perder a sua essência de rua. Nenhum dos artistas que cresceram aqui deixou de ser quem é. Além da conexão forte na música, nós temos uma conexão forte na vida. Nós somos de fato uma família, que preza muito pelas afinidades, por mais que sejamos profissionais.

'Eminem russo': Oxxxymiron cancela shows esgotados em protesto contra guerra na Ucrânia

O rapper Borges Foto: Ana Branco / Agência O Globo
O rapper Borges Foto: Ana Branco / Agência O Globo

Tijucano, que organizava chopadas de colégio, estudou Direito na Uerj e mais tarde começou a empresariar artistas do funk (como o MC Nandinho, do hit “Malandramente”), Lang conheceu Orochi há cerca de cinco anos. O rapper ainda era um adolescente, astro das batalhas de rima na Praça do Tanque, em Niterói, e integrante do grupo Modéstia à Parte.

— Mal existia uma cena de trap no Rio, mas o Orochi era um moleque muito fora da curva. Ele foi campeão nacional das batalhas de rima quando tinha 15 anos, e concorrendo com um pessoal bem mais velho que ele — diz o empresário. — E com ele eu identifiquei uma virada de jogo. O movimento do trap estava crescendo muito na cidade, enquanto o funk se tornava um gênero musical mais difícil de se trabalhar, por causa do estouro dos podcasts de DJ. Eles mesclavam várias músicas, tornando cada vez mais difícil que você estourasse um MC de funk.

Em Lang, Orochi encontrou apoio quando resolveu sair em carreira solo:

— No início era só um estúdio no meu quarto, em Vargem Pequena, onde eu gravava minhas paradas. Aí pensei: “Por que eu vou focar só em mim se tenho uma estrutura para gravar a galera?” E o Lang abraçou a ideia. Produzimos o “Celebridade”, meu primeiro álbum, e na sequência vieram as faixas do Assault (com alguns de seus amigos, como PL Quest, Shenlong e Azevedo). Era a Mainstream tomando forma.

‘Quem quer ouvir, ouve’

O primeiro grande sucesso da gravadora foi “Marília Mendonça”, faixa de Bin (rapper de Belford Roxo), da fase em que Orochi começou a prospectar talentos do underground. Logo em seguida, veio Borges, da Pavuna, que estourou com “Aonde eu sou cria” e chegou a ter seu rosto exibido no telão da Times Square, em Nova York, em ação do Spotify Radar.

— Eu tinha música de vários milhões (de streams) já, mas o bagulho cresceu mais quando eu entrei para a Mainstreet. Antes, eu não fazia dinheiro não. Mas, só de me tratarem como o artista que sou, já está de bom tamanho. Não adianta trabalhar com inimigo — diz Borges.

O rapper Chefin Foto: Ana Branco / Agência O Globo
O rapper Chefin Foto: Ana Branco / Agência O Globo

Para Lang, a razão do sucesso da Mainstreet (que além de gravadora é editora, agência de empresariamento, produtora de vídeos e parceira da Fluxo , organização de gamers de sucesso) foi ter profissionalizado o trap sem descaracterizá-lo:

— Se tiver alguém falando que para entrar na televisão ou para vender publicidade eu tenho que mudar isso ou aquilo, ou que os moleques não podem aparecer fumando maconha, vou perder a autenticidade. A realidade é essa. Quem quer ouvir, ouve.

Show no Super Bowl: atrações como Eminem, Snoop Dogg e Mary J. Blige

Morador da Vila Kennedy, na Zona Oeste, Natanael Cauã Almeida de Souza, o Chefin, queria ser jogador de futebol. Mas depois de muitos testes frustrados em clubes (“pela minha mãe, eu ia para o quartel”, diz) e da pandemia (que interrompeu as peladas com os amigos), ele começou a fazer os seus raps. Ano passado, “Selva”, “Blindadão de fé” e “Invejoso” viralizaram no TikTok e no Stories do Instagram e o puseram na mira da Mainstreet Records, que lançou “212” e “Deus é meu guia”. Hoje, Chefin tem dúvidas se vai concluir o ensino médio.

— Se eu parar para ir para a escola, vai ser um tempo perdido que eu podia estar fazendo uma música ou resolvendo algo de trabalho — argumenta ele, que compôs “212” no salão de barbeiro, cortando o cabelo. — Fiz uma prévia da música no Stories e ela bateu três milhões de views em três dias. Sou muito novo, às vezes fico pensando: “Caralho, o bagulho aconteceu!”

O rapper Bielzinho Foto: Ana Branco / Agência O Globo
O rapper Bielzinho Foto: Ana Branco / Agência O Globo

Chefin e o colega Oruam são algumas das mais novas contratações da Mainstreet, que começou com os amigos de Orochi (como PL Quest, que fazia segunda voz para o rapper), seguiu com Borges e, no ano passado, ganhou força com Poze do Rodo e Bielzin, compositor de boa parte das músicas do Poze e cria do funk da Fazendinha, no Complexo do Alemão. A dupla, por sinal, encabeça o projeto A Cara do Crime, responsável por “Nós incomoda”, faixa mais ouvida da gravadora em 2021.

— A rapaziada na favela sempre escutou Racionais MCs, que é rap mas é parecido com o trap, e depois Oroshi e Filipe Ret. E quando foi ver o trap estava grandão no Rio de Janeiro — relembra Bielzin, que começou a sua carreira de MC no funk.

'Malvadão 3': conheça a história do hit de Xamã

— Nosso artista é o moleque que veio de uma classe social baixa, que não tem condições de tocar a sua carreira e que não consegue entrar em uma empresa mais quadrada — observa Lang, que hoje em dia reúne na Mainstreet 19 artistas e mais de cem profissionais, entre produtores, designers, diretores de videoclipe, além de técnicos de som e de luz. — Busco trabalhar com pessoas que falam a mesma língua. Às vezes, a gente até treina um moleque novo porque vai se dar melhor com o artista. Mastigamos a informação e fazemos uma cobertura de 360 graus da carreira dele.

Por seus métodos de trabalho, a Mainstreet Records tem recebido elogios até de veteranos da cena carioca, como Marcelo D2:

— Em tempos em que se fala tanto de empreendedorismo, o rap vem dando aula. A Mainstreet tem mostrado o caminho de como o estilo precisa se organizar daqui para a frente.