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Cultura

Leia trecho inédito de 'A vida mentirosa dos adultos', de Elena Ferrante

Escritora italiana volta a Nápoles em novo romance, que terá tradução lançada no Brasil por clube de assinatura ainda este mês e nas livrarias em setembro
Paisagem de Nápoles, cidade onde Elena Ferrante situa seus romances Foto: Giuseppe D'Anna / Giuseppe D'Anna
Paisagem de Nápoles, cidade onde Elena Ferrante situa seus romances Foto: Giuseppe D'Anna / Giuseppe D'Anna

QUATRO

Em uma tarde em que os dois não estavam em casa, aproveitei para fuçar um móvel no quarto deles onde minha mãe guardava os álbuns nos quais mantinha em perfeita ordem as fotografias dela, do meu pai e as minhas. Eu conhecia aqueles álbuns de trás para a frente, já os havia folheado várias vezes: documentavam principalmente todo o relacionamento deles, os meus quase treze anos de vida. E eu já sabia que ali, misteriosamente, os parentes da minha mãe surgiam com frequência, já os do meu pai eram raríssimos e, sobretudo, dentre os poucos que apareciam, não estava tia Vittoria. Todavia, eu lembrava que em algum lugar, no móvel, havia também uma velha caixa de metal na qual ficavam guardadas em desordem as imagens de como os meus pais eram antes de se conhecerem. Como eu vira aquelas fotos poucas vezes, sempre na companhia da minha mãe, esperava encontrar lá no meio algumas fotos da minha tia.

Crítica: Autora aprofunda temas recorrentes como opressão do capital e do gêneros em "A vida mentirosa dos adultos", escreve Caetano Galindo

Desenterrei a caixa do fundo do armário, mas antes decidi reexaminar cuidadosamente os álbuns que mostravam os dois no tempo em que eram namorados, depois noivos emburrados protagonistas de um casamento com poucos convidados, depois como um casal sempre feliz e, por fim, eu, filha deles, fotografada uma quantidade descabida de vezes, do nascimento até hoje. Detive-me, sobretudo, nas fotos do casamento. Meu pai vestia um terno escuro visivelmente amarrotado e, em cada enquadramento, estava carrancudo; minha mãe estava ao seu lado sem vestido de noiva, mas com um tailleur creme, um véu da mesma cor na cabeça, a expressão vagamente comovida. Entre os trinta convidados, talvez um pouco mais, eu já sabia que estavam alguns dos amigos do Vomero que eles ainda viam e os parentes do lado materno, os bons avós do Museo. Mas, mesmo assim, olhei várias vezes, esperando encontrar uma figura, ainda que ao fundo, que me lembrasse não sei como uma mulher da qual eu não tinha lembrança alguma. Nada. Então passei para a caixa e, depois de muitas tentativas, consegui abri-la.

Despejei o conteúdo sobre a cama, as fotos eram todas em preto e branco. As que retratavam as adolescências separa- das deles não tinham ordem nenhuma — minha mãe alegre, com os colegas da escola, com amigas da sua idade, na praia, na rua, graciosa e bem-vestida — estavam misturadas com as de meu pai pensativo, sempre solitário, nunca de férias, com a calça esfolada nos joelhos e um paletó com mangas curtas demais. As fotos da infância e da primeira adolescência, por sua vez, estavam ordenadas em dois envelopes, as provenientes da família da minha mãe e as provenientes da família do meu pai. Nessas últimas — eu disse a mim mesma —, minha tia certamente deve aparecer, e comecei a olhá-las uma a uma. Não eram mais do que vinte, e logo me chamou a atenção que, em três ou quatro, meu pai, que nas outras imagens aparecia ainda criança, meninote, com os pais, com parentes que eu nunca vira, estava surpreendentemente ao lado de um retângulo preto desenhado com pincel atômico. Não foi preciso muito para que eu entendesse que aquele retângulo, extremamente preciso, era um trabalho tão obstinado quanto secreto realizado por ele. Imaginei-o fechando com a régua que mantinha sobre a escrivaninha uma parte da foto dentro daquela figura geométrica e depois passando cuidadosamente o pincel atômico em cima, tomando cuidado para não ultrapassar as margens preestabelecidas. Que trabalho paciente, não tive dúvida: os retângulos eram rasuras, e debaixo daquela tinta preta estava tia Vittoria.

Fiquei sem saber o que fazer por um bom tempo. Por fim decidi: peguei uma faca na cozinha e raspei com delicadeza um setor minúsculo da parte da foto que meu pai havia coberto. Logo percebi que só aparecia o branco do papel. Fiquei ansiosa, parei. Eu sabia que estava contrariando a vontade do meu pai e me assustavam as ações que podiam me privar ainda mais do seu afeto. A ansiedade cresceu quando encontrei no fundo do envelope a única foto em que ele não era criança ou adolescente, mas um jovem que — algo raríssimo nas fotos tiradas antes que ele conhecesse minha mãe — sorria. Ele estava de perfil, tinha o olhar alegre, os dentes retos e branquíssimos. Mas o sorriso, a alegria, não se dirigiam a ninguém. Ao lado, havia dois daqueles retângulos, extremamente precisos, dois caixões nos quais, em um tempo certamente diferente daquele momento cordial da foto, fechara o corpo da irmã e sabe-se lá de mais quem.

Concentrei-me naquela imagem por muito tempo. Meu pai estava na rua, vestia uma camisa quadriculada de mangas curtas, devia ser verão. Atrás dele, havia a entrada de uma loja, do letreiro lia-se apenas -RIA, via-se uma vitrine, mas não era possível entender o que estava exposto. Do lado da mancha escura, surgia um poste branquíssimo com os contornos marcados. E depois havia as sombras, sombras compridas, uma delas evidentemente de um corpo feminino. Meu pai, embora obstinado em apagar as pessoas que estavam ao seu lado, deixara a marca delas na calçada.

Empenhei-me outra vez em raspar aos poucos a tinta do retângulo, mas parei ao perceber que, também naquele caso, surgia o branco. Esperei um ou dois minutos e recomecei. Trabalhei com leveza, podia ouvir minha respiração no silêncio da casa. Parei definitivamente somente quando tudo o que consegui obter da área onde antigamente devia estar a cabeça de Vittoria foi uma manchinha que não dava para saber se era um resíduo de tinta ou um pouco dos seus lábios.