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Cultura

Livro da Nobel Toni Morrison é um ótimo estudo sobre o negro na literatura

'A origem dos outros' reúne seis ensaios proferidos em forma de palestras na Universidade de Harvard, em 2016
A escritora Toni Morrison, em 2008, em Nova York Foto: Damon Winter/NYT
A escritora Toni Morrison, em 2008, em Nova York Foto: Damon Winter/NYT

Em “ A origem dos outros ”, Toni Morrison (1931-2019) analisa como a literatura ora constrói, ora tematiza a ideia de uma alteridade radical em torno das pessoas negras. Para isso, revisita obras de diferentes períodos e perspectivas, debruçando-se sobre a caracterização e a função narrativa que as personagens negras recebem em romances como “A cabana do pai Tomás” (Harriet Beecher Stowe, 1852), “O som e a fúria” (William Faulkner, 1929) e “Ter e não ter” (Ernest Hemingway, 1937).

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Seu objetivo é detectar processos de “outremização”: de como os negros foram empurrados à categoria de outro de um modo tão radical a ponto de permitir que pessoas brancas considerassem que negar a humanidade deles reforçava a sua própria. Única mulher negra a ter sido laureada com o Nobel de literatura, Morrison mostra como, para além de questões éticas, o colorismo é um atalho narrativo um tanto pobre.

Livro A origem dos outros, de Toni Morrison Foto: Reprodução
Livro A origem dos outros, de Toni Morrison Foto: Reprodução

Documentos históricos também são abordados, com o objetivo de analisar como a ficção da raça recebeu fundamentações e materializações estapafúrdias até formar “a mais potente política identitária dos Estados Unidos: o racismo”, como afirma o escritor Ta-Nehisi Coates em seu prefácio — uma provocação à tendência de parte da esquerda de responsabilizar os movimentos identitários pela atual derrota do campo. Entre esses documentos estão relatos escritos e orais de escravizados e o impressionante diário de Thomas Thistlewood, um inglês que partiu para a Jamaica em 1750 e que registra os horrores da escravidão com uma objetividade distanciada e sem emoção, mesclando estupros cometidos a anotações de venda de farinha.

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Os ensaios que compõem o livro foram originalmente proferidos em forma de palestras na Universidade de Harvard, em 2016. Seu ponto alto são os momentos em que Morrison explica procedimentos narrativos que ela mesma empregou em seus romances. Um dos mais interessantes — e que não foi imediatamente bem recebido por alguns críticos negros — é a omissão deliberada de marcadores de raça, que surge em obras como “Paraíso” (1997), onde o leitor é forçado a se relacionar com as personagens sem saber a cor de sua pele.

Se raça é ficção, o artifício tentava tirar esse dado do caminho e ver como os leitores lidavam com as situações expostas sem conseguirem se apoiar nem no racismo, nem no essencialismo. Alguns, no entanto, disseram que, após décadas de empenho para construir narrativas poderosas sobre personagens negras, Morrison teria cedido a um “branqueamento literário”.

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Se durante séculos a literatura ofereceu suporte ideológico e conforto espiritual ao racismo, ao colonialismo e à escravidão, ela também é uma das ferramentas mais eficientes em seu questionamento. A análise do romance “O brilho do rei” (1954), do guineense Camara Laye, fecha o livro apontando para um caminho de superação do empobrecimento com o qual personagens, culturas e espaços marcados como negros foram tradicionalmente trabalhados até por autores que pretendiam exaltá-los.

Nessa obra, Laye subverte a narrativa do europeu que chega à África para vencer ou ser vencido pelo meio. Em vez do clichê, entrega a saga de desracialização de um homem branco privado de seus privilégios por uma série de circunstâncias nas quais a moeda de sua branquitude já não era aceita. Trata-se do caminho oposto do livro que Morrison estava escrevendo antes de morrer, e que não se sabe se foi completado ou se será publicado, mas que narra “a educação de um racista”, como conta em um dos ensaios.

“A origem dos outros: seis ensaios sobre racismo e literatura”

Autora: Toni Morrison.

Editora: Companhia das Letras.

Tradução: Fernanda Abreu.

Páginas: 147.

Preço: R$ 54,90.

Cotação: Ótimo

Juliana Cunha é professora da FGV-SP e doutoranda em Teoria Literária na USP