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Cultura

Livro desvenda a arte e o 'bandido corazón' de Ney Matogrosso

Em biografia ‘consentida’, o jornalista Julio Maria traça a trajetória do artista libertário que ‘se tornou algo que nunca procurou ser’
O cantor Ney Matogrosso Foto: Luiz Fernando Borges da Fonseca / Luiz Fernando Borges da Fonseca
O cantor Ney Matogrosso Foto: Luiz Fernando Borges da Fonseca / Luiz Fernando Borges da Fonseca

Foram necessárias 512 páginas para que o jornalista Julio Maria desse conta dos 80 anos de vida de um dos artistas mais populares e, ao mesmo tempo, inexplicáveis da MPB. Resultado de um trabalho de cinco anos, com quase 200 entrevistas e muitas viagens, “Ney Matogrosso — A biografia” (Companhia das Letras) chega aos leitores no dia 23 com fundamentadas tentativas de dar sentido à história de um cantor que, basicamente, fez do seu lema a defesa da liberdade de ser quem se é.

Capa de 'Ney Matogrosso - a biografia', de Julio Maria Foto: Reprodução
Capa de 'Ney Matogrosso - a biografia', de Julio Maria Foto: Reprodução

— Se você põe a obra da Elis ( Regina, de quem Julio escreveu uma biografia publicada em 2015 ) na mão de uma pessoa de fora do país, ela vai se encantar. Já a obra do Ney não vem sozinha — argumenta o autor. — Ele se tornou algo que nunca procurou ser. É surreal, o Ney não tinha sonho musical nenhum! Ele fala do Caetano Veloso ( aliás, um dos primeiros e mais entusiasmados leitores da biografia ), fala de quando o viu vestido de cor-de-rosa, mas foi a imagem, não a música do Caetano, que o tocou. A forca do Ney está muito na personalidade, e não dá para separá-la da discografia.

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Mesmo que mais tarde, com o LP “Pescador de pérolas” (de 1987, ao lado de Arthur Moreira Lima, Paulo Moura e Raphael Rabello), Ney tenha vindo a mostrar que era um cantor de verdade, da MPB, sua imagem mais forte é a do cantor que passou a exalar um erotismo para todos os sexos a partir do LP “Bandido” (1976). Para Julio, é impossível dar a dimensão da arte de Ney sem mergulhar na vida pessoal. Uma vida que — como bem mostra a “Biografia” —teve tanta cama (pela qual passaram, em momentos diferentes, do ator Leonardo Villar à cantora Simone) quanto palco.

— Fora o Ney, nenhum outro artista no Brasil encarnou tanto, e durante a vida toda, a liberdade sexual. Ele mostrou que, assim como o amor, a sacanagem é direito de cada um — diz o escritor, para quem é bem clara a razão de o artista ter resistido a se tornar um líder do movimento LGBTQIAP+. — Seria tudo o que a extrema-direita, o conservadorismo e os homofóbicos querem, porque aí eles teriam o Rei dos Gays. O Ney tem horror a isso, porque esvaziaria outros discursos que ele tem desde o início da carreira, da defesa das questões indígenas e ecológicas.

Uma grande surpresa para o escritor foi descobrir que Ney Matogrosso tem significativa parte do seu público ideologicamente identificado com a direita.

— O que o Ney faz é muito interessante, é praticamente uma estratégia de guerrilha, porque ao não se pronunciar politicamente durante os shows, ele faz o seu discurso na sequência de músicas, a revolta dele é colocada nos versos. É engraçado: os caras batem no Caetano, no Chico e no Gil, e não no Ney. Ele está no front, falando o que quer falar para pessoas, e elas saem mudas dos seus shows.

Apesar de Ney ter lido o livro antes da publicação, Julio Maria alega ter feito não uma biografia autorizada, mas “consentida, com toda a liberdade do mundo”. No trabalho, ele pôde colher histórias nunca reveladas, como as com Cazuza e Marco de Maria, grandes amores do cantor, que morreram de Aids nos anos 1990. A maior dificuldade, segundo ele, foi a de quebrar a carapaça do entrevistado e, assim, interromper “o circuito das histórias que ele sempre conta”.

— O Ney é o pior contador de histórias, elas não vêm com emoção. Ele acha que tudo o que aconteceu na vida dele é normal e não vai interessar a ninguém — entrega. — Ele sempre fala a mesma coisa sobre a passagem pelo quartel, mas quando eu achei o prontuário dele, tinha detenções, uma internação... e quando eu levava essas histórias, aí sim ele lembrava e contava com um pouco mais de detalhes.

Cinco meses atrás, Julio Maria entregou a “Biografia” a Ney. Antes de fazer suas observações (muitas de revisor, nenhuma de censor, garante o jornalista), houve um silêncio de alguns dias:

— Ele me disse que não sabia que ( nos anos 1970 e 80 ) a toda hora alguém estava chamando ele de veado, de forma pesada. Eu senti que isso pesou, ele se sentiu incomodado com esse preconceito de que foi alvo e com o livro ter trazido isso tudo de volta.