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Cultura

Livro infantil de vencedora do Nobel leva crianças (e adultos) a pensarem na vida

Em ‘A alma perdida’, Olga Tokarczuk usa a imagem de um homem sem memória para tratar de reencontros e descobertas
SC Ilustração de Joanna Concejo para o livro "A alma perdida", de Olga Tokarczuk
Divulgação / Editora Todavia Foto:
Divulgação/Editora Todavia / Agência O Globo
SC Ilustração de Joanna Concejo para o livro "A alma perdida", de Olga Tokarczuk Divulgação / Editora Todavia Foto: Divulgação/Editora Todavia / Agência O Globo

A escritora polonesa Olga Tokarczuk tem formação em Psicologia e exerceu a profissão por muitos anos a partir das ideias de Carl Gustav Jung. “Sou neurótica demais para ser terapeuta”, ela disse, ao explicar por que abandonou o trabalho como psicóloga e decidiu levar as questões sobre a vida e o mundo para a escrita ficcional. Sendo a literatura um terreno fértil para perguntas e buscas, ela encontrou um lugar confortável para pensar sobre o desconforto de viver, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura de 2018 e conquistou leitores dispostos a prestar muita atenção em tudo o que escreve.

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Depois de lançar “Sobre os ossos dos mortos” , a editora Todavia acaba de publicar no Brasil “A alma perdida”, um livro para crianças escrito por Olga. O texto preserva a luz junguiana na perspectiva de contar uma história que ilumina a sombra de um homem, o personagem, como metáfora do grande engano coletivo que nos afoga. Este homem funciona. E só isso. Vive a partir das demandas do próprio corpo, trabalha, dirige, joga tênis, viaja muito. Um dia, em um quarto de hotel, sente falta de ar, não sabe o lugar onde está e perde a voz. Quando esquece o próprio nome — a palavra que coloca uma pessoa na vida das outras —, está deflagrado seu estado de absoluta solidão. A médica que o atendeu é precisa no diagnóstico: sua alma está longe do corpo, é preciso aguardar o reencontro.

A economia de palavras é inversamente proporcional aos múltiplos sentidos e janelas que o texto consegue abrir a cada releitura. Além disso, o casamento do texto com as ilustrações de Joanna Concejo são um exemplo magistral do que deve ser o encontro entre palavra e imagem no livro para crianças. Sobre páginas amareladas pelo tempo, a busca do personagem vai aparecendo a lápis, em lembranças e espera, pois toda felicidade é memória e projeto, como disse o poeta Cacaso.

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Um dos aspectos de força do texto é a composição sobre a tensão, o constante choque dos extremos, o dual. A oposição entre corpo e alma — e a necessidade deste encontro. A palavra e o silêncio. Do masculino no homem doente e do feminino na médica que indica o caminho de cura. Do mundo adulto e da infância. Da passagem do tempo nos cabelos e nas plantas em contraste com a imobilidade da espera. Do enterro das malas e relógios — objetos volantes — e as rosas e as abóboras — vidas enraizadas. Tudo construído entre polaridades.

O livro mereceu a inclusão no prestigioso catálogo White Ravens, da Biblioteca Internacional da Juventude de Munique, um centro de excelência em pesquisas sobre a literatura para crianças e jovens produzida no mundo inteiro. Este gênero é massacrado por equívocos, preconceitos e enquadramentos, uma grande confusão entre pedagogia e poesia. O livro de Olga e Joana é um bom ponto de partida para pensar sobre isso.

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Na memória de todo leitor há um adulto apresentando livros no começo da vida. A mãe, o pai, outros familiares, professoras e professores, há sempre algum exemplo abrindo o caminho. Diante da imagem de um adulto com “A alma perdida” em mãos, ao lado de uma criança que o escuta, o que o texto diz está se realizando. O encontro está acontecendo e na aproximação está a centelha de alegria que integra a alma aos dias.

Para além do gesto e da intenção, a literatura infantil cobra uma relação muito segura do autor com as palavras. São poucas, é preciso escolher bem. O trabalho precisar estar concentrado em não perder a literariedade na obrigação equivocada de facilitar. Ou de ensinar. A leitura de “A alma perdida” evoca um exemplo brasileiro: o “Flicts”, de Ziraldo . Crianças e adultos entendem perfeitamente o conceito de inadequação, mas cada um a seu modo. Escrever para crianças é tratar da mesma vida e do mesmo mundo por onde transitam os adultos, mas a partir do instrumental dos símbolos. Disso Olga entende muito bem, aprendeu com Jung.

“A alma perdida” pode ser lido como um texto belo, poético, cru, doloroso, realista, necessário, esperançoso, triste, cada leitor captura a partir de sua própria lente. São as múltiplas camadas de possibilidades que fazem deste um grande livro. Justamente na ocasião do seu lançamento no Brasil, outra mulher ganhou um Prêmio Nobel de Literatura, a poeta americana Louise Glück . Um pequeno trecho de um de seus poemas dialoga perfeitamente com “A alma perdida” e encerra o que é possível dizer sobre ele: “Olhamos para o mundo uma vez, na infância. O resto é memória.”

* Socorro Acioli é escritora, doutora em Estudos de Literatura pela UFF e professora de Literatura e Escrita na Universidade de Fortaleza (Unifor)