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Cultura

MAR debate moradia, questões raciais e de gênero em 'Casa carioca', com mais de 600 obras

Com curadoria de Marcelo Campos e Joice Berth, mostra gratuita é aberta ao público a partir desta terça, apenas em visitas pré-agendadas
'Empilhamento' (2014-2016), de Andrey Zignnatto Foto: Fabio Rossi / Agência O Globo
'Empilhamento' (2014-2016), de Andrey Zignnatto Foto: Fabio Rossi / Agência O Globo

RIO — Prevista para ser inaugurada junto ao Congresso Mundial de Arquitetura, que seria realizado em maio no Rio e foi remarcado para 2021 por conta da pandemia, a coletiva “Casa carioca” também sofreu outras alterações além do adiamento de sua abertura. A nova mostra de longa duração do Museu de Arte do Rio, que passa a receber o público a partir de hoje, em visitações pré-agendadas, foi impactada pela quarentena e a mudança na forma de olhar a moradia e a cidade, trazendo novas questões à curadoria, que Marcelo Campos, do MAR, divide com Joice Berth, arquiteta, escritora e ativista do movimento feminista negro.

Campos observa que amostra voltou seu olhar para dentro da casa, com todas as questões que estão ali, de gênero, raciais, sociais:

— Tratamos, por exemplo, dos quartos de empregadas, um traço racista de nossa arquitetura, assim como o elevador de serviço. Mas a mostra também trata das celebrações e insurgências. O samba, quintais, lajes, reuniões, espaços de fé e subjetividade. Se o modernismo propunha uma uniformidade, não foi o que aconteceu. O que preenche essa casa é a convivência, o pinguim na geladeira.

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Com mais de 600 obras de mais de cem artistas de diversas gerações, “Casa carioca” faz um recorte histórico da moradia, e de como o espaço urbano é moldado por ciclos de ocupações, remoções e ações de reordenamento urbano. Divididos em dez núcleos, os trabalhos provenientes do acervo do MAR e de outras 30 instituições vão do bucolismo do óleo “Dia de sol — Andaraí Grande” (1891), de Eliseu Visconti, à pluralidade urbana de obras de artistas como Maxwell Alexandre, Aleta Valente, Mulambö, Rafael BQueer, Rosana Paulino, Cinthia Marcelle e Denilson Baniwa. Além de registros fotográficos da cidade em transformação assinados por Marcel Gautherot, Kurt Klagsbrunn, Evandro Teixeira e Custodio Coimbra, fotógrafo do GLOBO, o diálogo da produção mais recente busca eco em obras de Volpi, Cícero Dias, Lasar Segall e Lygia Clark.

'Salão Parayzo' (2016), de Lyz Parayzo; ao fundo, obras do Opavivará e de Alan Fontes Foto: Elisa Mendes/Divulgação
'Salão Parayzo' (2016), de Lyz Parayzo; ao fundo, obras do Opavivará e de Alan Fontes Foto: Elisa Mendes/Divulgação

— A produção mais histórica no Brasil, que está nas coleções, acervos e museus, é eminentemente branca e masculina — comenta Campos. — Essa mistura de gerações amplia a discussão sobre gênero e racialidade. Há muitos artistas negros e negras, gêneros dissidentes. Tivemos também esse posicionamento na seleção.

Um exemplo é a instalação “Salão Parayzo”, de Lyz Parayzo, que, na abertura para patrocinadores e apoiadores, na última sexta-feira, foi ativada por outra artista que se define como travesti, Agrippina R. Manhattan, performando como manicure e atendendo os visitantes. Lyz, que está vivendo em Paris, conseguiu patrocínio para que a ação ocorra ao menos uma vez por mês, até o encerramento da mostra, no ano que vem. Doada ao MAR, a instalação tem como cláusula que a ativação deve ser feita sempre por pessoas não cisgêneras.

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— Essa obra tem uma relação com a minha história, minha avó era manicure, minha mãe tinha salão em casa — lembra Lyz. — Além da representação destes corpos dissidentes que estão associados à obra, ela também cria uma cadeia de remuneração para trans e travestis.

'Minha herança é o trabalho', de Bruno Portella Foto: Divulgação
'Minha herança é o trabalho', de Bruno Portella Foto: Divulgação

Um dado do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU) que também orientou a curadoria foi a descoberta que 85% das casas brasileiras são autoconstruções, ou seja, levantadas pelos próprios moradores sem a orientação de um arquiteto. Ainda que a exposição conte com projetos assinados por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, a proporção orientou a seleção no sentido de que tipo de moradia deveria estar representada entre as obras.

— A autoconstrução está relacionada a algo ancestral, que é construir a moradia com suas próprias mãos. Uma vertente da arquitetura hoje é fazer a mediação entre estes saberes e os recursos técnicos que um profissional pode oferecer. Um dos problemas é o custo, obras assim podem custar até três vezes mais — destaca Joice Berth.

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A arquiteta lembra a Lei 642-A /2017, de autoria da vereadora assassinada Marielle Franco, que institui assistência técnica pública em projetos de habitação para famílias de até três salários mínimos:

— Uma das dificuldades ainda é conseguir profissionais para atuar em projetos populares. A arquitetura continua sendo uma carreira elitizada, mas ela precisa descer do pedestal.