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Cultura José Eduardo Agualusa

O modernismo brasileiro ajudou a libertar países africanos de língua portuguesa

A afirmação de uma identidade própria, que, na sua fase inicial, motivou o movimento no Brasil, tocou profundamente os jovens africanos

Um pouco como aquela borboleta que, batendo as asas em Pequim, inicia, sem o saber, um ciclone em Zanzibar, o modernismo brasileiro ajudou a gerar o movimento claridoso em Cabo Verde, e toda uma impetuosa vaga literária, em Angola e Moçambique, que precedeu e preparou as independências africanas.

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Em 1936, um grupo de jovens poetas e romancistas criou na pequena cidade do Mindelo, na Ilha de São Vicente, em Cabo Verde, uma revista literária à qual deram o nome de “A Claridade”. O movimento claridoso, como ficou conhecido, é uma clara resposta crioula ao modernismo brasileiro. Essa ligação está explícita em muitos trabalhos de autores cabo-verdianos, como, por exemplo, na comovedora “Carta a Manuel Bandeira”, de Jorge Barbosa:

“(…) Eu faria por ti (Manuel Bandeira) qualquer cousa impossível. / Era capaz de procurar a Estrela da Manhã por todos os cabarés, / por todos os prostíbulos. / E eu ta levaria / pura ou degradada até à última baixeza. / Bateria de manso / à porta do apartamento do poeta solitário, / ali na Avenida Beira Mar do Rio de Janeiro. / (…) se estivesses a escrever na máquina portátil / deixarias o poema no meio / e virias abrir-me a porta. / Então, sem qualquer palavra, / passar-te-ia a Estrela da Manhã. / Depois voltaria tranquilamente para a minha ilha, / no outro lado do Atlântico.”

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Em Angola, alguns anos mais tarde, um dos fundadores da moderna poesia angolana, Maurício Gomes, escreveria:

“Ribeiro Couto e Manuel Bandeira / poetas do Brasil / do Brasil, nosso irmão / disseram: / — é preciso criar a poesia brasileira, / de versos quentes, fortes, como o Brasil, / sem macaquear a literatura lusíada. // Angola grita pela minha voz / pedindo a seus filhos nova poesia.”

A afirmação de uma identidade própria, que, na sua fase inicial, motivou o modernismo brasileiro, tocou profundamente os jovens africanos. Tal reivindicação fazia ainda mais sentido nos territórios ainda sob domínio português, numa época em que a generalidade das manifestações culturais africanas eram desprezadas e combatidas pelas autoridades coloniais.

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Em Angola e Moçambique, os movimentos literários, organizados em torno de revistas como “Mensagem” (1950), começaram por reivindicar a necessidade de construir uma literatura que refletisse as expressões culturais endógenas, e que, mesmo utilizando a língua do colonizador, não pudesse ser confundida e assumida como “portuguesa”. Em pouco tempo, os jovens envolvidos nesses movimentos evoluíram das propostas culturais para as políticas, e logo estavam exigindo a independência dos respectivos territórios. Alguns deles, como o romancista angolano Pepetela, chegaram mesmo a combater, de armas na mão, contra as tropas coloniais. Não por acaso, os primeiros governos constituídos em Angola e Moçambique, após as independências, contavam com um número impressionante de poetas e romancistas.

Assim, é legítimo dizer que o modernismo brasileiro ajudou a libertar os países africanos de língua portuguesa — ainda que distraidamente, alheadamente, sem jamais se dar conta disso.