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Cultura

'Na pandemia, parece que Deus falou para os artistas: 'Vou aumentar a dificuldade porque sei que vocês vão resolver!', diz Emicida

Em ambiente espacial, o rapper discute temas como economia e desigualdade racial na série 'O enigma da energia escura', que estreia quarta-feira no GNT
O rapper Emicida, no programa "O enigma da energia escura" Foto: Jef Delgado / Divulgação
O rapper Emicida, no programa "O enigma da energia escura" Foto: Jef Delgado / Divulgação

RIO - A caminhada que Emicida iniciou em 2019 com o álbum “AmarElo” tem sido longa – passou em 2020 pelo consagrado documentário “É tudo pra ontem” e, há poucas semanas, pelo lançamento do registro completo do show no Teatro Municipal de São Paulo cujas cenas serviram de fio condutor para o doc. Mas ele não sossega (ou quase não): agora o rapper ( vencedor do prêmio Faz Diferença de música, do GLOBO, em 2020 ) está com a família na cidade portuguesa do Porto, que serve de base para que ele cumpra a partir de quinta-feira uma residência artística no Centro de Estudos Sociais de Coimbra. Em sua temporada lusa, ele tem escrito todo dia. E seguido com os estudos de flauta transversa, iniciados há quatro meses.

— Sou muito fã do Pixinguinha, e coloquei uma meta ara mim: vou sair dessa pandemia tocando “Carinhoso”. E estou tocando “Carinhoso”, fui ousado. Isso faz parte do meu processo criativo. Quanto mais estudo, mais eu quero contar histórias. A flauta tem aberto um universo para mim — conta Emicida, que ainda se propõe a tentar desvendar galáxias de assuntos, a partir de quarta, com a série “O enigma da energia escura”, do canal GNT (mas também disponível no Globoplay).

Questões vistas do espaço

Inicialmente com cinco episódios de 25 minutos de duração, “O enigma” é um claro desdobramento de “AmarElo”. Comandada por Emicida no cenário de uma cabine espacial em alguma lonjura do espaço sideral, a série embarca em diversas reflexões sobre as relações, no Brasil, entre economia e desigualdade racial; negritude, cultura e resistência; eugenia e branquitude. Produzida pelo irmão do rapper, Evandro Fióti, por meio da Laboratório Fantasma, a série conta com três diretores negros: Day Rodrigues (de “Mulheres negras - projetos de mundo”), Emílio Domingos ( “A batalha do passinho” , “Favela é moda” ) e Mariana Luiza (do curta-metragem “Cascas de baobá”).

— O doc “AmarElo – É tudo pra ontem” passa superficialmente por uma série de assuntos, ele funciona melhor como uma provocação do que como uma aula — acredita Emicida. — Agora, no “Enigma”, de alguma forma a gente tem a oportunidade de se aprofundar em alguns assuntos que também poderiam estar lá, embasados com as falas de especialistas. É fantástico a gente poder tratar especificamente da (filósofa e antropóloga) Lélia Gonzalez, que a gente homenageou no filme, e da sua pesquisa linguística em um episódio completo. Ou então fazer uma imersão na riqueza intelectual das composições dos blocos afro da Bahia nos anos 1970 e 80.

Emicida diz esperar que o “Enigma” suscite discussões que possam “transcender as bolhas” com profundidade e diálogo para continuar a construir pontes em um país socialmente fraturado.

— Ninguém é dono de um assunto, ainda mais de um assunto estruturante da sociedade brasileira como o racismo. Ele é prioritário não da população negra, mas da sociedade. Todos nós somos impactados pelas consequências dessa tragédia. Se a gente não tratar essa questão como uma ferida da sociedade brasileira, e de uma forma muito evidente, a gente não consegue avançar — diz. — Nenhuma dessas conversas termina com ponto final, mas com reticências. Todo mundo está ávido por ter razão, por ter certeza. Todo mundo precisa de um sim, só que a experiência humana é muito mais complexa. E às vezes o mais sólido que a gente vai encontrar é um talvez.

Brasil em bifurcação

As inspeções nas estruturas do Brasil feitas em “O enigma da energia escura” inevitavelmente levaram Emicida a reflexões sobre o momento político de 2021.

— Toda a ignorância que a gente produziu e varreu para baixo do tapete resultou no Bolsonaro. E nessa bifurcação de agora, a gente precisa entender se vai pisar no acelerador de alguém que não consegue apresentar um mínimo de humanidade numa tragédia de escala global, ou se a gente consegue ser melhor do que isso. Essa é a provocação que o Brasil tem que resolver — desafia ele, atento também ao desmonte cultural que acontece no país. — Na impossibilidade de tirar o povo do Brasil, seja via genocídio, guerra ou extradição, me parece que se tentou tirar o Brasil das pessoas. E isso está extremamente ligado à memória e à cultura. Na pandemia, parece que Deus olhou para ao artistas e falou: “Eu vou aumentar o grau de dificuldade porque eu sei que vocês vão resolver!”

“Na pandemia, parece que Deus olhou para ao artistas e falou: “Eu vou aumentar o grau de dificuldade porque eu sei que vocês vão resolver!””

Emicida
Rapper

Ao menos, o desempenho brasileiro na Olimpíada de Tóquio serviu para lavar a alma de Emicida:

— Eu tinha esquecido como que era torcer, vibrar, ser feliz, mano! A Rebeca Andrade, a Rayssa Leal e todos os outros... o que eles são que não os brasileiros que lotam os ônibus às cinco da manhã e trazem a medalha todo mês para os estômagos de suas famílias? — pergunta-se. — Me deu uma tristeza grande por ver que o nosso esporte está muito entregue às traças, assim como a nossa cultura. Mas não vou esconder que a felicidade de ver a vitória de cada uma dessas pessoas é imensa. E a Rebeca é Guarulhos, do lado de casa, senti como se a medalha fosse minha!

Animado com a residência artística no Centro de Estudos Sociais de Coimbra (“minha base não é acadêmica, meu livro de história é um disco do Cartola”), Emicida não deixa um minuto só minuto de pensar em música. E seus interesses vão do disco que vem preparando, com o produtor Marcos Preto, para Alaíde Costa (uma das mais elogiadas cantoras do Brasil, de 85 anos), a conversas com Priscilla Alcantara (ascendente estrela do pop gospel, de 25):

— Para mim são duas artistas fantásticas, duas manifestações de dois tempos diferentes que se encontram dentro desse guarda-chuva imenso – ou melhor, um guarda-sol – que é a cultura do Brasil. Eu não quero de maneira alguma ficar como um cavalo com uma tapeira olhando para o espelho e vendo só eu mesmo. A música do Brasil é maior do que o Brasil, parça!