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Cultura

No que 'O gambito da rainha' acerta e erra ao representar o xadrez na tela

Nova série da Netflix traz Anya Taylor-Joy como jogadora inspirada em Bobby Fisher e teve Garry Kasparov como consultor
Anya Taylor-Joy em 'O gambito da rainha' Foto: Divulgação
Anya Taylor-Joy em 'O gambito da rainha' Foto: Divulgação

Na série "O gambito da rainha", o personagem Benny Watts (Thomas Brodie-Sangster) caminha até Beth Harmon, a heroína interpretada por Anya Taylor-Joy, no início do campeonato de xadrez dos EUA, em 1967. O local é um pequeno auditório no campus da Universidade de Ohio. Proferindo um palavrão, Benny gesticula ao redor do salão e reclama das condições, observando que os melhores jogadores do país estão competindo, mas o local é de segunda categoria, os tabuleiros de xadrez e as peças são de plástico barato e os poucos espectadores parecem entediados.

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Como um mestre do xadrez que cresceu na era logo após aquela em que a série se passa, e que escreveu a coluna de xadrez para o "New York Times" por oito anos, posso atestar a autenticidade quase dolorosa da cena. Muitos torneios daquela época eram disputados em locais inadequados e às vezes sombrios. Mesmo o campeonato nacional dos EUA não estava imune: a competição de 1964-65 sequer foi realizada.

Kasparov entre os consultores

Cena da série 'O gambito da rainha' Foto: Divulgação
Cena da série 'O gambito da rainha' Foto: Divulgação

A conversa entre Beth e Benny  reflete conhecimento sobre a situação do xadrez nos Estados Unidos na época em que a trama se passa. E funciona como exemplo de uma das muitas razões pelas quais a série está sendo considerada uma das melhores adaptações do jogo para a tela.

Ao longo das décadas, tornou-se quase uma piada entre os fãs de xadrez apontar erros de representação do jogo  na tela. Dan Lucas, um dos principais funcionários da Federação de Xadrez dos EUA, manteve uma lista não oficial durante anos. Entre as transgressões mais comuns: tabuleiros com orientação incorreta (deve haver sempre um quadrado branco no canto direito), arranjos incorretos de peças (como inverter os reis e rainhas em seus quadrados iniciais) e personagens que não sabem como mover e manusear as peças.

Para evitar esses erros, os criadores de "Gambito" trabalharam com dois consultores: o ex-campeão mundial Garry Kasparov e Bruce Pandolfini, um conhecido treinador de xadrez da cidade de Nova York. Pandolfini faz até uma participação especial como diretor de torneio do Kentucky.

Dedicação obsessiva

Os criadores do programa fizeram um trabalho particularmente bom em capturar e dramatizar a alta tensão dos torneios de xadrez e a obsessão que o jogo pode inspirar. Uma cena de efeito cômico, por exemplo, traz uma grande dose verdade: Harry Beltik (Harry Melling) puxa uma grande caixa de livros de xadrez e começa a passá-los para Beth, mas logo descobre que ela já leu a maioria deles. E, sim, jogadores de xadrez realmente dedicados costumam jogar partidas inteiras em suas cabeças, como Beth e Benny fazem, anunciando os movimentos enquanto aceleram em uma estrada.

Como pegar nas peças

Os atores foram treinados para tocar e mover peças como especialistas, o que geralmente é feito com movimentos rápidos, quase como uma metralhadora. Taylor-Joy na verdade desenvolveu seu próprio estilo mais fluido, como ela explicou em uma entrevista para a revista "Chess Life", baseado em seu treinamento como dançarina. Na série, ela pega as peças e as vira suavemente.

Jogos reais

Os jogos retratados na série não são apenas realistas; eles são reais, baseados em competições reais. Por exemplo, a partida em que Beth venceu Harry pelo título estadual do Kentucky vem de um jogo em Riga, Letônia, em 1955. O último jogo de xadrez rápido em que ela derrotou Benny foi jogado na Ópera de Paris em 1858; e a partida em que enfrentou o campeão russo Vasily Borgov (Marcin Dorocinski) na final da série foi disputada em Biel, na Suíça, em 1993.

Tempo errado

Apesar dos esforços, a série ainda comete as suas falhas. A mais aparente está na rapidez com que os jogadores se movem durante os torneios. Como um diretor de torneio disse a Beth antes de uma competição em Cincinnati, cada jogador tem duas horas para fazer 40 movimentos, o que era, e ainda é, um controle de tempo padrão para tais jogos.

Mas em todas as partidas, Beth e seus oponentes fazem cada um de seus movimentos depois de levar apenas alguns segundos para pensar neles. Nesse ritmo, eles terminariam seus jogos em minutos, não horas. A velocidade é compreensível para a produção de filmes porque assistir jogadores sentados em uma mesa por horas, mal se movendo, não é divertido.

Muita falação

E temos as conversas entre os competidores durante alguns jogos. A  não se para oferecer um empate, os jogadores não se falam durante as partidas. Não é apenas considerado falta de espírito esportivo, é contra as regras.

Mas várias vezes, Beth e seus adversários trocam provocações. Como no jogo de Beth contra Harry, no Episódio 2, em que ela comemora perto do final, e em seu jogo contra um jovem prodígio russo na Cidade do México, no Episódio 4. O diálogo torna os jogos mais compreensíveis e apimenta o drama, mas não é realista.

Personagens reais

Embora “O gambito da rainha” seja uma obra de ficção, com personagens que nunca existiram, há referências passageiras a jogadores reais, entre eles os campeões mundiais José Raúl Capablanca, Alexander Alekhine, Mikhail Botvinnik e Boris Spassky.

Há também um momento curioso em que Harry compara Beth a Paul Morphy, um americano que participou do famoso jogo na Ópera de Paris, em 1858, e é considerado o maior jogador do século XIX. A comparação parece um equívoco. Apesar de suas tendências autodestrutivas, Beth não se parece com Morphy. Ela está mais perto de uma versão feminina de outro campeão: Bobby Fischer.

Isso pode não ser acidental. Walter Tevis, que escreveu o romance de 1983 no qual a série se baseia, era um jogador amador apaixonado e experiente. Ao fazer da protagonista uma mulher jogando um jogo há muito dominado pelos homens — e que continua a ser hoje, embora ninguém saiba o motivo —, Tevis pode ter expressado a esperança de que um dia pudesse haver verdadeira igualdade entre os sexos no jogo.

Semelhanças entre Beth e Bobby Fisher

O próprio Fischer desprezava as jogadoras, dizendo em uma entrevista de 1963 que elas eram "terríveis" e que uma razão provável era não serem "tão inteligentes". Fazer Beth uma representação feminina de Fischer pode ter sido uma alfinetada.

Os paralelos entre os dois são numerosos (sem o uso de drogas dela, que, a propósito, só teria piorado, não melhorado, seu jogo).

“O gambito da rainha” cobre o período de 1958 a 1968. Isso coincide com o auge da carreira de Fischer, que foi de 1957, quando ele ganhou o campeonato dos Estados Unidos, aos 14; a 1972, quando ganhou o campeonato mundial, aos 29, e desistiu de competir. Beth vence o campeonato dos EUA em 1967, ano em que Fischer conquistou seu oitavo e último título americano.

Depois que sua mãe adotiva morre na Cidade do México, Beth, que está no final da adolescência, acaba morando sozinha. Logo depois que a irmã mais velha de Fischer, Joan, se casou e se mudou, sua mãe, Regina, foi buscar um diploma de medicina. Isso deixou Fischer, aos 16 anos, morando sozinho.

Fischer era um tanto anti-social e unidimensional, e falava sobre poucos assuntos além de xadrez. Beth é mais simpática, uma necessidade para uma personagem principal em uma série, mas tem alguns traços semelhantes. Aprende russo para se preparar para enfrentar os jogadores soviéticos; Fischer aprendeu russo sozinho para poder ler os jornais de xadrez locais, as melhores fontes de informação da época.

Ao contrário dos outros jogadores importantes da série, Beth consegue ganhar a vida jogando xadrez. Até Benny, um ex-campeão dos EUA, mora em um porão sombrio. Fischer foi pioneiro como jogador profissional em tempo integral nos Estados Unidos. Kasparov costuma dizer que foram as exigências de Fischer por melhores condições de disputa e prêmios maiores que profissionalizaram o jogo.

Quando Beth precisa de dinheiro para ir à Rússia, ela pede ao governo que pague a viagem. A mãe de Fischer certa vez fez piquete na Casa Branca para tentar arrecadar dinheiro para o time de xadrez dos EUA.

Um dos motivos pelos quais Beth não tem verba suficiente para a viagem é porque ela comprou muitos vestidos. Fischer, apesar de estar sempre querendo dinheiro, mandava fazer seus ternos e sapatos sob medida.

Finalmente, Beth e Fischer têm estilos de jogo agressivos semelhantes. E quando jogam as brancas e enfrentam a Defesa Siciliana, ambos usam o mesmo sistema: o Ataque Fischer-Sozin.