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Cultura

Novo formato da Flip divide opiniões no mercado editorial. Entenda.

Em mais uma edição digital, festa terá pela primeira vez uma curadoria coletiva e não homenageará um único autor; Temas como a floresta e as plantas deverão ter lugar de destaque nas mesas
Flip de 2019 Foto: Leo Martins / Agência O Globo
Flip de 2019 Foto: Leo Martins / Agência O Globo

A Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) pegou o mercado editorial de surpresa ao anunciar, nesta quarta-feira (4), que a edição deste ano contará com uma curadoria e homenagens coletivas. Em vez de eleger um único autor, como nas edições anteriores, a Flip vai homenagear pensadores indígenas mortos pela Covid-19. “Será então uma Flip em defesa da arte, da vegetação que protege o planeta e, sobretudo, da vida em suas múltiplas configurações”, afirmou a organização.

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As mudanças anunciadas refletem o conteúdo do manifesto “Nhe’éry, Plantas e Literatura”, divulgado nesta quarta. Nhe'éry (pronuncia-se nheeri) quer dizer “onde as almas se banham” e é como o povo Guarani chama a Mata Atlântica, uma denominação que revela toda a “pluriversalidade” da floresta. Segundo a organização da festa literária, os homenageados deste ano se enquadram na definição de "pessoas-enciclopédias", como o escritor Higino Tenório, o artista plástico Feliciano Lana, o líder guarani Domingos Venite, e a guardiã das plantas de cura do povo Mura, Maria de Lurdes, entre outros. Temas como a floresta e as plantas deverão ter lugar de destaque nas mesas, de acordo com os curadores.

O novo formato da festa, que este ano será novamente virtual, dividiu opiniões. Uma fonte do mercado editorial usou a expressão “reversão de expectativas” ao se referir aos anúncios desta quarta. A expectativa, segundo ele, era que a Flip discutisse temas políticos urgentes, como a deterioração do país e os ataques que os povos indígenas vêm sofrendo. “Não dá para a Flip ignorar que o mundo está pegando fogo”, disse, antes de se referir à festa como “cloroflip”. “Não sei se interrogar planta é a melhor saída”.

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Houve, porém, quem considerasse os planos da Flip “um posicionamento claro e assertivo num momento importante do país”. “Imagino que algumas pessoas vão achar que o mercado está subrepresentado, mas a Flip tem autonomia financeira e curatorial”, disse um editor. “É saudável que a Flip se reinvente. A pandemia parece ter acelerado a reinvenção do formato”.  “A Flip está atendendo a uma demanda dos tempos”, afirmou um editor. “O maior desafio da festa é manter o fôlego nesta segunda edição online”. Também não ficou claro qual será o lugar da literatura. Editores temem ainda que a interlocução com os cinco membros do conselho curador seja mais difícil do que era com um único responsável pela curadoria.

Uma editora reclamou que há apenas uma mulher na curadoria e que a Flip teve apenas duas curadoras mulheres em sua história. Ela também lamentou a ausência da figura do autor homenageado. “Para um evento online, tudo bem não ter um autor homenageado, mas como vai ser quando a festa voltar para Paraty?”, questiona. “O autor homenageado é a cara da Flip e tinha desdobramentos interessantes, que iam desde pesquisas acadêmicas até a possibilidade de mais leitores descobrirem um grande escritor. Gostaria que a Flip não perdesse o propósito de oferecer experiências literárias. Os temas da floresta podem e devem ser discutidos em outros espaços.” A Flip não confirma que curadoria coletiva e a ausência de autor homenageado continuarão quando a festa voltar a ser presencial.

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A disputa pela alma da Flip é antiga. Há tempos, a festa, que estreou em 2003, é criticada por, supostamente, ter abandonado a literatura, não trazer mais grandes autores ao país e só se interessar por política. Por outro, a cobrança por uma Flip mais diversa, representativa e engajada também aumentou nos últimos anos. Em 2016, o então curador Paulo Werneck foi duramente criticado porque, entre os autores convidados naquele ano, não havia um só negro. Em carta aberta, professoras da UFRJ chegaram a chamar a festa de “arraiá da branquitude”.

A resposta da Flip veio no ano seguinte, quando o elenco convidado pela nova curadora, Joselia Aguiar, contava com maioria feminina e um terço de autores negros. Naquele ano, chamaram atenção a ausência de grandes estrelas, a quantidade de editoras independentes representadas e a força do engajamento político da programação paralela. No início, o mercado estranhou um pouco a politização do maior evento literário do país, que servia de vitrine a grandes lançamentos e apostas das editoras, mas não demorou a entender que o público estava ávido por diversidade. Nos anos seguintes, a lista de mais vendidos da Flip passou a ser ocupada por autores negros e indígenas, como Grada Kilomba e Ailton Krenak. Fontes ouvidas pelo GLOBO reconhecem que a “pressão” exercida pela Flip contribuiu para o aumento da oferta de autores negros e indígenas pelo mercado editorial.

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A Flip enfrentou seu principal problema político no final de 2019, após eleger como autora homenageada a poeta americana Elizabeth Bishop. Logo após o anúncio, começaram a pipocar nas redes sociais trechos da correspondência de Bishop nos quais ela chamava o golpe militar de 1964 de “revolução rápida e bonita”. Escritores, editores e leitores pressionaram a Flip para cancelar a homenagem à poeta, o que só ocorreu em agosto, quando a curadora Fernanda Diament pediu demissão e afirmou, em entrevista ao GLOBO, que a festa precisa de “uma mulher negra para reinventá-la”. Após a saída de Diament, começou a ser aventada a possibilidade de uma curadoria coletiva e a aproximação da festa com a temática indígena. Para a edição do ano passado, contudo, optou-se por uma festa sem curador e sem autor homenageado.

O conselho curador anunciado nesta quarta – composto pelo antropólogo Hermano Vianna, o escritor e filósofo Evando Nascimento, a editora Anna Dantes, o antropólogo João Paulo Lima Barreto e pelo crítico literário Pedro Meira Monteiro – foi elogiado pelas fontes ouvidas pelo GLOBO. Já se especula que um dos autores convidados desta edição possa ser o botânico italiano Stefano Mancuso, autor de “A revolução das plantas”, publicado pela Ubu. Stefano garante: “as plantas têm inteligência”. A Flip afirma apenas que “uma escuta com as editoras já foi iniciada e em breve serão anunciados os primeiros nomes do Programa Principal”.