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Cultura

'O problema, para Arendt, não era quem escolhe o mal, mas a indiferença', diz biógrafa da filósofa

A sueca Ann Haberlein explica como o conceito de responsabilidade da pode ser aplicado ao combate à pandemia no Brasil e diz que a pensadora aprendeu a amar com seu segundo marido, o poeta Heinrich Blücher, e não com Heidegger
A pensadora política Hannah Arendt. Segundo sua biógrafa, Ann Heberlein, ela reagia aos problemas filosofando e usava o pensamento para controlar as emoções Foto: Divulgação
A pensadora política Hannah Arendt. Segundo sua biógrafa, Ann Heberlein, ela reagia aos problemas filosofando e usava o pensamento para controlar as emoções Foto: Divulgação

Primeiro, Hannah Arendt resolveu estudar o conceito de amor em Santo Agostinho. Depois, apaixonou-se por seu professor Martin Heidegger (1889-1976), filósofo consagrado que na época agitava o ambiente intelectual alemão ao desdenhar de toda a metafísica produzida desde os gregos e que é acusado simpatizar com o nazismo . No entanto, a sueca Ann Heberlein, autora da biografia “Arendt: entre o amor e o mal”, argumenta que a filósofa aprendeu a amar não com Santo Agostinho ou com Heidegger, mas com o poeta Heinrich Blücher, que ela conheceu em Paris, em 1936, e com quem viveu até a morte dele, em 1970.

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Especialista em ética e teologia (como a própria Arendt), Ann Heberlein parte de dois conceitos caros à filósofa — o amor e o mal — para esmiuçar a vida e a obra da autora de “Origens do totalitarismo”. A filosofia de Hannah Arendt, afirma, é inspirada nas experiências que marcaram sua vida, como o Holocausto . Em entrevista ao GLOBO, por Zoom, a biógrafa explica como o conceito arendtiano de responsabilidade pode ser aplicado ao combate à pandemia no Brasil e diz que ela reagia aos problemas filosofando.

Arendt foi citada até na CPI da Covid, que investiga como o governo reagiu à pandemia. Qual a relevância do pensamento dela hoje?

No centro do pensamento de Hannah está o conceito de responsabilidade. Todo indivíduo é responsável quando age e quando escolhe não agir. Esse conceito se aplica, por exemplo, à negligência do governo brasileiro em relação à pandemia. Hannah reprovaria a atitude do seu presidente de negar a gravidade da pandemia e exigiria que ele fosse responsabilizado. O problema, para ela, não eram aqueles que escolhem o mal, mas aqueles que escolhem a indiferença.

Você estudou ética e teologia, assim como Arendt. Esses interesses em comum aproximaram vocês duas?

Descobri a obra de Hannah ao escrever um ensaio sobre o perdão. Ela é um dos poucos filósofos que argumentam que certas coisas não devem ser perdoadas, como o Holocausto. Às vezes, o perdão é incompatível com o amor próprio. O que é tão cruel que não pode ser punido adequadamente não deve ser perdoado. Ela se interessava não pelo trabalho emocional, mas pelo trabalho moral envolvido no perdão. Fiquei realmente fascinada quando descobri a correspondência dela com Heidegger. Como uma pessoa tão racional se apaixonou daquele jeito? Como ela o perdoou por apoiar o nazismo?

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Seu livro mostra como o relacionamento de Arendt e Heidegger era assimétrico. Era um relacionamento abusivo?

Heidegger foi a primeira pessoa com quem Hannah sentiu uma profunda conexão intelectual. Eles tinham os mesmos gostos em filosofia, poesia e música. Nas cartas, há um intenso debate intelectual. Por ele ser casado, o relacionamento foi um tanto frustrante, mas não abusivo. Hoje consideraríamos inapropriada a relação entre a estudante Hannah e o professor Heidegger. Se o #MeToo existisse na Alemanha dos anos 1920, ele teria sido demitido.

É preciso conhecer a vida de Arendt para entender seu pensamento?

Hannah partiu de suas próprias experiências para refletir sobre o amor e o mal. Começou estudando o amor em Santo Agostinho e acredito que ela talvez continuasse dedicada ao tema se sua vida não tivesse sido atropelada pelo mal, pelo nazismo. Ela reagia aos problemas filosofando. E também usava o pensamento para controlar as emoções. Ela e Blücher não eram monogâmicos, o que, na teoria, funcionava. Quando ele conheceu uma moça mais jovem e Hannah sentiu ciúme, ela refletiu e concluiu que a fidelidade sexual era para os fracos.

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Com quem Arendt aprendeu mais sobre o amor: Santo Agostinho, Heidegger ou Blücher?

Não acho que o que Hannah sentia por Heidegger era amor, talvez fosse só paixão. Ou loucura. Ela confessou que Blücher havia lhe ensinado tudo sobre o amor. Ela dizia para ele: “você é minhas quatro paredes”. Hannah deixou tudo para trás (seu país, sua língua etc.) , mas, com Blücher, estava sempre em casa. Isso é amor. Muita gente pensa que amor tem a ver com sentimentos intensos, mas o amor é calmo. O amor nunca vem fácil, exige trabalho e comprometimento, mas nos leva à ação.

Capa de "Arendt: entre o amor e o mal", biografia a filósofa política alemã escrita pela sueca Ann Heberlein e publicada pela Companhia das Letras Foto: Reprodução / Divulgação
Capa de "Arendt: entre o amor e o mal", biografia a filósofa política alemã escrita pela sueca Ann Heberlein e publicada pela Companhia das Letras Foto: Reprodução / Divulgação

Serviço:

“Arendt: entre o amor e o mal”

Autora: Ann Heberlein. Tradução: Kristin Lie Garrubo. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 256. Preço: R$ 64,90.