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Cultura

Que dia é hoje? Como a quarentena está afetando a nossa noção do tempo

Planeta vive o seu 'Feitiço do tempo' com experiência de confinamento global
Na quarentena prolongada, muitas pessoas perderam as referências temporais, como no filme "O feitiço do tempo" Foto: Mona El Falaky / Divulgação
Na quarentena prolongada, muitas pessoas perderam as referências temporais, como no filme "O feitiço do tempo" Foto: Mona El Falaky / Divulgação

RIO - Em “Feitiço do tempo” (1993), clássico da “Sessão da Tarde” estrelado por Bill Murray, o “homem do tempo” de um canal de TV é enviado a uma cidadezinha dos EUA para cobrir o Dia da Marmota. A festividade, que a cidade ama, mas ele despreza, consiste em acompanhar o comportamento do roedor para concluir, daí, como será o inverno. Se o repórter já acha dureza viver 24 horas assim, imagine acordar na manhã seguinte (e na outra e na outra...) com tudo acontecendo do mesmíssimo jeito, num eterno Dia da Marmota.

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A premissa da história tem sido muito lembrada desde que importantes marcos temporais sumiram da nossa rotina com as medidas de isolamento social adotadas para evitar que a Covid-19 se espalhe ainda mais. Estima-se que mais de 1/3 da população mundial estejam de quarentena. Não há dia de escola, o trabalho (quando tem) é muitas vezes em home office , e os programas de fim de semana acabaram. Sem tudo isso, nos perdemos no calendário.

Na Itália, o psiquiatra e filósofo Mauro Maldonato conta que boa parte de seus pacientes tem essa queixa. Voluntário do Serviço de Psicopatologia de Emergência de seu país durante a pandemia, ele atende por Skype muitas pessoas que, confinadas há semanas, não sabem em que dia estão.

— Começamos a perder a noção do tempo — diz ele, que também é professor de Psicologia Clínica na Universidade de Nápoles e autor do livro “Passagem do tempo” (Sesc SP). — É como se o horizonte tivesse ficado imóvel. Tem paciente que me conta que não sabe se está na terça ou na quinta-feira, e essa deficiência temporal tem causado angústia e fadiga crônica.

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A desorientação se alastra. E também os comentários e até gracejos sobre ela. “Não consigo me lembrar de algum tempo que não tenha sido março”, tuitou na quinta (ou seria terça?) o comediante americano Ken Jennings.

O estranhamento, porém, pode ser uma oportunidade para repensar nossa condição temporal. Se o confinamento em escala global é uma experiência sem precedentes, seus efeitos são imprevisíveis. Integrante do Instituto de Psicossomática de Paris, a psicanalista Margaret Waddington Binder vê na situação semelhanças com o que vivem pessoas internadas por um longo período, que acabam perdidas no tempo e no espaço. Um “eterno agora” que coloca os quarentenados diante de um sentimento normalmente ignorado: a consciência da finitude.

— O enfrentamento dessa questão é altamente modificador — lembra ela. — Não raro, as pessoas saem dessas vivências com sentimento de urgência, necessidade imperiosa de fazer o que não fizeram, ser quem não foram. Elas descobrem que o tempo que temos é o agora, e o dia é o hoje. Mas muitas vezes, saem profundamente deprimidas.

A quarentena faz pensar em como se viveu até aqui.

— Outro dia, uma amiga disse que a pandemia nos deu a oportunidade de descobrir que já estávamos doentes — diz o engenheiro florestal Fabio Scarano, autor de “Regenerantes de Gaia” (Dantes). — Com essa superconectividade, nunca fomos tão velozes. Mas ainda assim estamos sempre nos sentindo atrasados. O confinamento faz refletir. Para que essa velocidade toda? Precisamos nos deslocar tanto e tão rápido?

Questão de ritmo

Maldonato, o italiano citado no começo do texto, lembra o teólogo Santo Agostinho, que dizia: tempo é aquilo que todo mundo sabe o que é, mas ninguém consegue explicar:

— A verdade é que a pergunta não deveria ser “o que é o tempo?” e sim “quem é o tempo?”. Porque o tempo é um fenômeno intrapsíquico, uma relação pessoal. Acredito que a ideia de se reapropriar do tempo estará no centro do debate após a pandemia.

Quando se discute esse nebuloso conceito, afinal, cada um tem sua definição — e sensação. Obcecado pelo assunto, o filósofo francês Étienne Klein, autor do livro “O tempo que passa (?)” (Editora 34), recolheu a percepção temporal de pensadores e cientistas. E a problematizou. Ele os separou em dois grupos: os que veem o tempo como natural, que é sempre igual e não depende de nós, e os que acham que ele é subjetivo e só existe em nossa consciência. Klein, porém, não acha que nossa atual desorientação tenha a ver com isso.

— O que estamos perdendo não é o senso do tempo, mas do ritmo. Desapareceram os elementos que davam referência ao nosso ritmo pessoal, como trabalho e transportes. O tempo tornou-se apenas ele mesmo: o tempo.

Para Klein, os efeitos do confinamento estariam muito mais associados a uma questão espacial:

— O problema não é a duração da quarentena, mas a incapacidade de se deslocar. ( O ensaísta ) Emil Cioran dizia que se entendiar é mascar o tempo puro. Pode ser muito mais encontro do que perda.

A propósito... (e aqui vem SPOILER!): no final de “Feitiço do tempo”, o protagonista debochado e egocêntrico repensa sua vida, experimenta a empatia. E, assim, escapa do Dia da Marmota.