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Cultura

Quem é Domenico Losurdo, o filósofo italiano que encantou Caetano Veloso

Louvado por suas críticas ao liberalismo por uns e acusado de stalinismo por outros, o intelectual marxista tentou reabilitar Stálin e não poupava elogios à China
O filósofo italiano Domenico Losurdo, o novo favorito de Caetano Veloso Foto: Heleni Andrade / Divulgação
O filósofo italiano Domenico Losurdo, o novo favorito de Caetano Veloso Foto: Heleni Andrade / Divulgação

SÃO PAULO – Desde que Caetano Veloso admitiu seu apreço por Domenico Losurdo (1941-2018), leitura indicada pelo youtuber comunista Jones Manoel, o nome (e as controvérsias) do filósofo italiano está na boca da internet. Dos liberais à extrema-esquerda, todo mundo tem um adjetivo na ponta da língua (ou dos dedos) para se referir ao novo autor favorito de Caetano: stalinista, revolucionário, farsante, anti-imperalista, revisionista. Para uns, o italiano foi campeão do socialismo que desmentiu farsas propagadas pelo liberalismo. Para outros, um defensor dos crimes do ditador soviético Joseph Stálin (1878-1953) e do autoritarismo chinês. Quem foi, afinal, Domenico Losurdo?

Nascido em Sannicandro de Bari, no Sul da Itália, Domenico Losurdo foi um intelectual e militante comunista que passou boa parte de sua vida acadêmica debruçado sobre textos de filósofos alemães: Kant, Hegel, Nietzsche, Heidegger, etc. O colapso dos regimes socialistas, entre o final dos anos 1980 e o começo dos anos 1990, levou Losurdo a abraçar ainda mais fortemente o marxismo, diferentemente de muitos outros intelectuais de esquerda, que trocaram Karl Marx por outros filósofos da moda depois da queda do Muro de Berlim.

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Segundo Diego Pautasso, doutor em ciência política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), após o desmantelamento da União Soviética, Losurdo se dedicou a quatro eixos de pesquisa: 1) crítica do liberalismo e combate à crença de que os liberais sempre estiveram na linha de frente das lutas democráticas; 2) balanço das experiências socialistas (URSS, China); 3) crítica do colonialismo, do imperialismo e das “diversas formas de submissão dos povos a Washington e seus aliados”; 4) crítica da esquerda contemporânea, em especial do “marxismo ocidental”, que teria “negligenciado as grandes problemáticas de seu tempo”, abandonado a “luta de classes e a luta contra o imperialismo” e abraçado “as narrativas da globalização”. Em um vídeo publicado no YouTube em julho de 2019 e intitulado “Por que ler Domenico Losurdo”, Jones Manoel, a nova referência política de Caetano, também faz referência a esses quatro eixos temáticos.

– Em livros como “Contra-história do liberalismo” e “Democracia ou bonapartismo”, Losurdo empreende a mais original e robusta crítica à ideologia liberal – diz Pautasso. – Ele faz a genealogia das ideias liberais, desde (John) Locke e (filósofo inglês, 1632-1704) e (Benjamin) Constant (francês, 1767-1830) até (Ludwig von) Mises (economista austríaco, 1881-1973) e (Milton) Friedman (americano, 1912-2006). E mostra que, embora o liberalismo se venda como promotor da democracia e dos direitos civis, é só olhar para a história dos países que envergaram bandeira do liberalismo para comprovar que essa hagiografia não faz sentido. O liberalismo esteve estreitamente ligado à escravidão e ao colonialismo e muitas vezes se opôs ao sufrágio universal e apoiou a segregação racial.

Stálin revisitado

Ao reavaliar as experiências socialistas, Losurdo comparou os crimes do líder soviético (estima-se que cerca de 20 milhões de pessoas tenham morrido enquanto Stálin permaneceu no poder) com os crimes do liberalismo (genocídios patrocinados por nações capitalistas, campos de concentração mantidos por potências coloniais, crimes de guerra) e argumentou que, no fim, são os liberais quem têm a ficha "mais suja". Segundo Pautasso, Losurdo arriscou um “balanço objetivo” do stalinismo.

No livro “Stálin: história e crítica de uma lenda negra”, Losurdo tenta reabilitar o ditador soviético, o que lhe rendeu inúmeras críticas e acusações. Em uma resenha do livro, Cícero Araújo, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP), afirmou que, embora não negue os crimes de Stálin, Losurdo “busca de fato uma defesa da biografia política do ditador soviético e das principais decisões que tomou ao longo dos quase 30 anos em que esteve à frente do país”. Em 1934 e 1939, os expurgos de Stálin resultaram na prisão de mais um milhão de “inimigos da classe trabalhadora”, muitos dos quais foram enviados a campos de trabalho forçado, os gulags, e em mais de 700 mil mortes. Os crimes de Stálin foram denunciados por Nikita Kruschev, seu sucessor, no 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética, em 1956.

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Para Mario Maestri, doutor em História pela Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica, Losurdo era um “neostalinista”, um “falsário” e um “farsante”.

– Do ponto de vista intelectual, o livro dele sobre Stálin é uma falsidade – diz Maestri, autor do ensaio “Domenico Losurdo: um farsante na Terra dos Papagaios”. – Ele tinha formação em filosofia e não falava uma palavra em russo e, ainda assim, tentou reconstituir a história da União Soviética, escreveu que Stálin não gostava do culto a sua personalidade e o pintou como uma pessoa humilde e recatada.

Maestri, que se declara “revolucionário” e “trotskista”, critica a opção de Losurdo por apontar a sujeira dos liberais na tentativa de defender o comunismo soviético e também seu entusiasmo por Estados nacionais fortes e pelo capitalismo chinês.

– Ele fala em “ditadura desenvolvimentista”. Parece até o (Ernesto) Geisel – diz Maestri, referindo-se a um dos generais que governou o Brasil durante a ditadura militar.

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Losurdo não poupava elogios ao regime chinês. Segundo o italiano, as reformas capitaneadas por Deng Xiaoping, que adicionaram um pouco de capitalismo à ditadura comunista, garantiriam que, diferentemente da URSS, o regime não desmoronaria. O filósofo italiano também era um crítico do que chamava de “esquerda ausente”, companheiros que rejeitavam as experiências do socialismo real, e do “marxismo ocidental”, que, aliás, ele ataca em um livro oportunamente intitulado “O marxismo ocidental” e publicado no Brasil pela Boitempo. Contra o marxismo filosofante de professores universitários europeus, Losurdo defendia as ideias de revolucionários como o chinês Mao Tsé-tung (1893-1976) e o vietnamita Ho Chi Minh (1890-1969).

'Tachá-lo de stalinista é baixo'

Marcos Tadeu Del Roio, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), recomenda julgar com cautela a obra do italiano, que, segundo ele, “gostava de estimular o debate e a polêmica”.

– Losurdo é autor de uma obra fundamental, especialmente no que se refere à história da filosofia. Tachá-lo de stalinista é baixo. Não é com críticas vulgares que a ciência avança. Temos que fazer um balanço crítico de sua obra– diz Del Roio, que atesta a proliferação de grupos de estudo da obra do intelectual italiano em universidades brasileiras. – Eu próprio discordo da valorização extremada da questão nacional e do entusiasmo dele pela China. O que há na China é um capitalismo de Estado e devemos nos lembrar de que todo capitalismo explora trabalho. Losurdo sabia disso, mas preferia enfatizar as centenas de milhões que saíram da pobreza. Mas a que custo?

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Em 2003, Del Roio topou com Losurdo no aeroporto de Milão. Os dois estavam a caminho do Brasil. Ao reconhecer o italiano, Del Roio se apresentou, e os dois começaram a conversar e  acabaram sentando lado a lado no avião:

– Eu dormi muito naquela viagem, mas ele leu um livro inteiro durante o voo: “Para além do bem e do mal”, de Nietzsche.