Exclusivo para Assinantes
Cultura

Retrospectiva 2020: o ano em que o e-commerce salvou o mercado editorial

Fechadas durante boa parte do ano, livrarias tiveram queda de faturamento e editoras passaram a depender cada vez mais da Amazon
Dono da livraria Leonardo Da Vinci, Daniel Louzada, com queda de faturamento de cerca de 30%, precisou demitir funcionários e renegociar o aluguel: livreiro reclama que não dá para competir com os gigantes do e-commerce Foto: Ana Branco / Agência O Globo
Dono da livraria Leonardo Da Vinci, Daniel Louzada, com queda de faturamento de cerca de 30%, precisou demitir funcionários e renegociar o aluguel: livreiro reclama que não dá para competir com os gigantes do e-commerce Foto: Ana Branco / Agência O Globo

SÃO PAULO — Paulo Rocco é um decano do mercado editorial brasileiro. Começou trabalhando na Sabiá, sob as ordens de Fernando Sabino e Rubem Braga , em 1968, e na década seguinte fundou a editora que leva seu sobrenome. Desde então, abriu caminho para Paulo Coelho e "Harry Potter" no Brasil, viu Clarice Lispector ganhar popularidade na internet, presidiu o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) quando o setor editorial se livrou da cobrança de PIS-Cofins e sofreu com "planos econômicos miraculosos". Mas garante: nunca viveu um ano como 2020. O tempo da hiperinflação, quando quase só se vendia livro no último dia do mês, antes de os preços subirem de novo, e o Plano Collor, que deixou os editores "sem um tostão", chegaram perto. Para Rocco, 2020 obrigou as editoras a um "reposicionamento comercial".

Letramento antirracista: Em 2020, mercado editorial viveu 'boom' de autores negros, mas ainda falta diversificar a cadeia de produção do livro

Esse reposicionamento foi, na prática, uma tentativa de ocupar os espaços virtuais depois que a pandemia de Covid-19 obrigou livrarias de todo o país a fechar as portas no primeiro semestre. Assustadas, as editoras suspenderam os lançamentos e apostaram nas redes sociais — para estreitar laços com os leitores confinados depois que os eventos foram cancelados — e nas vendas on-line. Terminam o ano mais dependentes do que nunca do e-commerce e, principalmente, da Amazon . Em 2019, segundo pesquisa divulgada pelo SNEL, as livrarias físicas e as vendas on-line representaram, respectivamente, 50,5% e 17,9% do faturamento do setor editorial. A expectativa é que, este ano, a internet tenha sido responsável, sozinha, por mais da metade.

— Tomamos um susto em março, mas, depois de maio, o mercado começou a se recuperar — diz Rocco. — Com as livrarias fechadas, o e-commerce entrou para valer. Agora, deve responder por uns 70% das vendas, mas depois se estabiliza em uns 50%. E as livrarias físicas, que são vitrines para os lançamentos, também se reinventaram e começaram a vender on-line . Todo mundo se reposicionou.

Marcos da Veiga Pereira: 'A pandemia mostrou que precisamos das livrarias'

Depois de encolher 25% entre 2006 e 2018 e assistir à quebra das duas principais redes de livrarias, a Saraiva e a Cultura , a indústria do livro começou a se recuperar em 2019 (o faturamento cresceu 6,1%). O ano de 2020 começou bem, mas aí veio a pandemia, e o governo ameaçou impor ao setor a CBS , contribuição a ser criada pela Reforma Tributária proposta pelo Ministério da Economia. Segundo Mauro Palermo, diretor da Globo Livros, apesar da crise, a expectativa é que 2020 seja melhor que 2019.

— Para nossa, surpresa, as vendas que perdemos nas lojas físicas, ganhamos no varejo on-line — diz Palermo, que avisa ainda que a supremacia digital e o dólar nas alturas vão obrigar as editoras a produzir livros mais baratos e a investir na produção nacional.

De fato, 2020 foi o ano do e-commerce e, mais precisamente, da Amazon, que já responde por mais da metade do faturamento de várias editoras. Editores evitam demonizá-la e, mesmo lamentando a política de preços "predatória", lembram que, no fim, ela ajuda a fechar as contas.

Busca pelos clássicos

Não foram só as vendas que migraram para o digital. Impedidas de realizar sessões de autógrafos, as editoras levaram seus autores para as redes sociais. A Record, ainda em março, lançou encontros virtuais, a "Quarentena literária", e depois o podcast "A casa do livro". O número de seguidores no Instagram cresceu 44% na pandemia. A concorrência também se mexeu. A Companhia das Letras promoveu os festivais virtuais "Na janela" e "No divã" .

Os eventos on-line estimularam a busca pelos clássicos : em um único dia de abril, a Companhia vendeu mais de 60 cópias de "A montanha mágica", de Thomas Mann, que em suas 800 páginas fala sobre um sanatório de tuberculosos — e o destino da Alemanha. A Record assistiu ao aumento da procura por livros como "O amor nos tempos do cólera", de Gabriel García Márquez , e "A peste", de Albert Camus . O leitor estava a fim de clássicos e, se achasse um que falasse de doença ou confinamento, melhor.

Quarentena em alto mar: Enquanto 'A peste' vira best-seller, editor de Albert Camus está num navio sem saber se poderá sair

A Ediouro Publicações, que tem um notável catálogo de títulos consagrados, também reparou que o leitor estava atrás daqueles livros que todo mundo tem que ler. Mas também estava atrás dos preços mais baixos que só a internet oferece. Daniele Cajueiro, diretora editorial da Ediouro, afirma que foram necessárias algumas mudanças para baixar os preços e aproveitar os canais de venda alternativos. A Ediouro também foi uma das primeiras a apostar num título sobre a vida depois do vírus: "O mundo pós-pandemia" reuniu ensaios sobre o que vem por aí, ainda que, nas palavras de Daniele, "nunca foi tão difícil prever o ano seguinte".

Se 2020 foi bom para as editoras, as livrarias, obrigadas a fechar as portas, têm mais do que se queixar. A Leonardo da Vinci, no Rio, passou 109 dias fechada e amarga uma queda de faturamento de cerca de 30% após o "fantástico" ano de 2019. Como muitas outras lojas, a Da Vinci foi obrigada a entrar na internet (previsto para junho, o site foi antecipado para maio) e a vender pelas redes sociais e até pelo WhatsApp. Proprietário da livraria, Daniel Louzada precisou demitir funcionários e renegociar o aluguel. Ele reclama que não dá para competir com os gigantes do e-commerce.

— O preço baixo da Amazon não é mérito dela, mas da falta de uma legislação que proteja a cadeia do livro — afirma.

GIselle Beiguelman: 'Memes ajudarão a contar a história da temporada covídica

A Livraria da Vila, com 12 lojas em São Paulo e Paraná, também acelerou os planos digitais. Estreou e-commerce em dezembro passado, mas não estava preparada para investir tanto quanto a pandemia obrigou. Segundo o dono da rede, Samuel Seibel, depois de representar 100% das vendas, na fase mais restritiva da quarentena, o site termina o ano respondendo por cerca de 7%. Apesar de comemorar ter aberto duas novas lojas este ano e planejar mais uma para o começo de 2021, Seibel não quer depender ainda mais das vendas na internet:

— O crescimento on-line depende de descontos e não conseguimos trabalhar com uma margem tão apertada.

Nos últimos anos, o setor discutiu a criação de uma lei que limitasse descontos e protegesse as livrarias da concorrência desleal com o varejo on-line. Segundo Marcos da Veiga Pereira, presidente do SNEL, a chamada lei do preço fixo "bateu na trave" ainda na gestão de Michel Temer e não deve voltar à ordem do dia no governo Bolsonaro, com o qual editoras não têm interlocução.