Cultura

Tem surra de protagonismo preto nos realities shows

Vencedores do "The Voice Brasil", na Globo, e de "A Fazenda", na Record, Victor Alves e Jojo Todynho dão continuidade a sequência de conquistas de participantes negros nos principais programas do gênero no país
Victor Alves com Iza: o cantor de 20 anos venceu o último The Voice Brasil Foto: Divulgação/Isabella Pinheiro
Victor Alves com Iza: o cantor de 20 anos venceu o último The Voice Brasil Foto: Divulgação/Isabella Pinheiro

Em duas emissoras distintas, a noite de ontem (17) trouxe uma vitória única: de negros. Na Globo, o cantor Victor Alves vencia a 9ª temporada do programa "The Voice Brasil",  garantindo o prêmio de R$ 500 mil na conta, contrato com a gravadora Universal Music e o gerenciamento de sua carreira musical. Na RecordTV, a funkeira Jojo Todynho levava o prêmio de R$ 1,5 milhão de outro reality show, "A Fazenda". Tudo no voto popular (na final do "The Voice", o voto técnico não é contabilizado). Coincidência ou o indício de um movimento social em curso? A resposta vai se desenhando ao se olhar para os prêmios dados nas edições deste ano pelos principais realities shows brasileiros da tv aberta: em abril, na Globo, no desfecho de um Big Brother Brasil marcado por discussões sobre machismo e racismo, foi uma mulher negra que levou o prêmio máximo, a médica Thelma Assis. Em outubro, na mesma emissora, a bandeira da representatividade era levantada por uma geração mais jovem: com 14 anos, também negro, da periferia carioca e com um discurso sobre representatividade ainda em formação, o ator e cantor Kauê Penna venceu o The Voice Kids.

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- Este movimento está ficando cada vez mais evidenciado, do potencial artístico, cultural e educacional negro no campo do conhecimento humano. Nós, negros e negras, já sabíamos disso fazia tempo; mas a sociedade brasileira - conservadora e racista, mas de um racismo cada vez mais estrutural - ignorava por uma visão tacanha de uma disputa inexistente - diz o jornalista, professor e crítico literário Tom Farias, que também é pesquisador engajado no resgate de figuras importantes da história, cultura e literatura afrobrasileiras. - Entendo que muita coisa ainda está por vir e que tais avanços ainda são poucos para o reconhecimento geral de uma população que representa a maioria do povo brasileiro. Evidentemente que o racismo e o preconceito de raça e classe não vão cessar por causa desses feitos, mas representam simbolicamente um marco no olhar de que os negros de um modo geral são mais do que operadores braçais de uma sociedade neoescravista e neocolonialista, do ponto de vista do capital e do domínio dos meios de produção - complementa.

O pesquisador também aponta para um conjunto de forças agindo para que tais vitórias aconteçam, sobretudo pelo voto popular. Lembra da onda forte através das redes sociais dominadas por grupos sociais negros e chama atenção para o "peso de uma classe média que está questionando seus privilégios sociais e financeiros, diante do fragelo da pobreza e da desigualdade".

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A "onda" vem sendo surfada pelos produtores dos programas que abraçam as massas da população brasileira. Em texto divulgado pela Comunicação da Globo, a emissora diz que "para ser escolhida todos os dias pelos brasileiros, precisa estar conectada com eles, contar histórias que os representem e representem o Brasil. Ela sabe que só consegue fazer isso retratando a pluralidade da sociedade brasileira". Se o texto parece bem mais bonito que a realidade feia da desigualdade, percebe-se um investimento de fato diante e por trás das câmeras: no mesmo texto apresentado ao jornal, a Globo informa que triplicou as contratações de "talentos negros" nos últimos cinco anos. E que, junto com a Flup (Festa Literária das Periferias), criou o Laboratório de Narrativas Negras para o Audiovisual, um projeto de formação e inclusão no mercado de novos roteiristas autodeclarados negros. As questões do preconceito e da desigualdade de oportunidades entre raças ganham espaço nas campanhas da emissora, em cenas "educativas" das novelas, e, é claro, na distribuição dos participantes dos realities shows.

Em 2020, eles entraram nas "casas" dos realities. E saíram vitoriosos:

Victor Alves - The Voice Brasil

Victor Alves: vencedor do The Voice Brasil Foto: Divulgação
Victor Alves: vencedor do The Voice Brasil Foto: Divulgação

Havia 50% de chances de dar um negro como vencedor do The Voice Brasil 2020 na noite desta quinta-feira, 17 de dezembro. Victor Alves, do "time de Iza", disputava o título com o também negro Izzra (Carlinhos Brown), e mais dois brancos, Ana Canhoto (Lulu Santos) e Douglas Ramalho (Michel Teló). Ganhou de virada, com 34% dos votos, acabando com a sequência de vitórias dos apadrinhados por Teló (que ganhou as últimas cinco edições).

Baiano e com 20 anos, Victor cresceu em Macaé e começou a cantar na igreja, ainda pequeno. Veio para a capital carioca no início deste ano, antes de explodir a pandemia do novo coronavírus, para tentar a carreira musical. Com poucos trabalhos no setor -  e nem sempre ele recebia pelas apresentações - entregou comida de bicicleta, entre outros trabalhos informais, como o de soldador de portões de alumínio.

O discurso da vitória é de quem também não está acostumado a ganhar na vida. E a ser visto com olhos do preconceito. Victor lembra de um episódio recente em que, ao entrar pela segunda vez com um amigo também negro em um mercado, foi seguido por um segurança e teve de provar que não levava nada roubado.

- Sempre tive isso de desacreditar em mim mesmo, não imaginava chegar onde cheguei... Ano passado tive depressão e tantas coisas ruins já me aconteceram, que significou muito esta vitória. Agora só quero comemorar e depois colocar a minha cabeça no lugar - diz o cantor, ainda impactado pela vitória, mas já recebendo mil mensagens sobre o tema "representatividade" e reconhecendo a importância de seu feito.

Kauê Penna - The Voice Kids

Kauê Penna: vencedor do "The Voice Kids" Foto: Divulgação/Isabella Pinheiro
Kauê Penna: vencedor do "The Voice Kids" Foto: Divulgação/Isabella Pinheiro

Outro que acordou com seu celular repleto de mensagens e pedidos de entrevista sobre "o protagonismo negro nos realities" foi o jovem ator e cantor Kauê Penna, vencedor da quinta temporada do "The Voice Kids", também da Globo. Apesar de sua vitória ter acontecido no dia 11 de outubro, o cantor foi lembrado com as conquistas dos "irmãos". Tem apenas 14 anos, mas já se vê ali um discurso em formação sobre o seu papel na questão racial. Já fala em "nós" e lembra que "a Beyoncè já falou disso", ao se referir sobre as dificuldades dos negros no mercado de trabalho em geral, e, em específico, no meio musical.

- Não tenho muito tempo de carreira,  mas sei como é difícil. Quando penso em minha vitória e na de Victor, Jojo e Thelma, entendo que nós podemos, nós chegamos, nós estamos aí, sem depender de raça, de gênero ou de religião - diz o jovem.

Jojo Todynho - A Fazenda 12

Jojo Todynho: vencedora de "A Fazenda 12" Foto: Reprodução
Jojo Todynho: vencedora de "A Fazenda 12" Foto: Reprodução

Por um contrato de excluvidade até o fim de 2020 com a Recortv, que não liberou a entrevista a tempo de acontecer antes da publicação da reportagem, Jojo não comenta aqui a sua vitória na final de ontem à noite do reality "A Fazenda". Mas a funkeira de 23 anos, que mora em Bangu e levou o prêmio de R$ 1,5 milhão do programa, em uma final do reality que ultrapassou a marca de mais de 1 bilhão de votos (com mais de 100 mil votos por segundo), é das que gostam de falar. Polêmica e fenômeno das redes sociais (tem 13,6 milhões de seguidores no Instagram), não é todo negro que se vê representado por ela. Mas tem admiradores de respeito: em seu perfil no Facebook, a escritora Conceição Evaristo anunciou seu voto para Jordana Gleise, e disse que "temos que perseguir a sorte grande ou que a sorte grande tem de nos perseguir. Pelo menos hoje, que as balas, a pandemia, a morte, o racismo, o sexismo, o feminicídio e todas desgraceiras do mundo se afastem de nós".

Thelma Assis - Big Brother Brasil 20

Thelma Assis: médica e vencedora do BBB 20 Foto: Divulgação
Thelma Assis: médica e vencedora do BBB 20 Foto: Divulgação

Em um programa marcado por debates sobre machismo e racismo, foi também uma negra que levou o prêmio máximo do Big Brother Brasil 20, na Globo, na noite de 27 de abril. A médica anestesista paulistana Thelma Regina Assis, de 35 anos, lembrou, em entrevista recente à CELINA , que por muito anos, foi a única aluna negra em suas aulas de balé, a única mulher negra na faculdade, e de como isso lhe causava desconforto:

- Acho que a melhor forma de lidar com isso é seguindo e mostrando a nossa capacidade, independente de gênero ou de cor. Para mim, era uma questão de honra vencer a faculdade e mostrar que eu era tão capaz quanto as outras 99 pessoas de outra cor que estavam ali comigo. Acho que isso serve como exemplo para outras pessoas, agora que elas tomaram conhecimento da minha história - disse ao GLOBO, na ocasião, complementando: - Achei muito interessante que as pessoas trouxeram esses assuntos, colocaram isso em pauta, e me elegeram como uma representante de um 'basta' para qualquer tipo de discriminação.

No quesito vitória em realities shows, desta vez Thelma não é a única.